(Foto de Eugénia Sousa)
Caso
1 - Como
muitos outros no comércio a retalho, há três anos um reconhecido
comerciante da Baixa de Coimbra, em dificuldade para cumprir com as
suas obrigações, pediu para aderir ao PER, Processo Especial de
Revitalização. O PER tem como finalidade permitir ao
devedor que esteja numa situação economicamente difícil ou
em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja
passível de ser recuperado, negociar com os credores com vista a um
acordo que leve à sua revitalização.
Tinha pouco mais de 60
anos de idade. Para além de sentir ainda cheio de força, uma
falência na vida de um qualquer comerciante que sempre levou a vida
comercial a sério é uma espécie de bomba-atómica que, para além
de destruir tudo à volta, desde família até amigos, rebenta com a
auto-estima do mais forte. Para além disso tinha um empregado com
mais de trinta anos de fidelidade à sua causa. Era fácil chutá-lo?
Era, se aquele pequeno universo familiar fosse uma multinacional com
patronato sem rosto. Então, presumivelmente, depois de muitas
conversas à mesa de jantar com os mais chegados, teria optado por,
antes morrer no caminho da salvação do que render-se e desistir de
lutar contra uma sorte adversa.
Caso
2 – Há cerca de três anos, por ter encerrado a loja
onde trabalhava como empregado há mais de vinte anos, um balconista
lançou-se numa antiga aspiração: entrar no negócio. Afinal era um
sonho por realizar e, aparentemente, o destino estava a abrir-lhe o
caminho. Por ser ainda novo, à volta de meio-século, não se via
sem trabalhar e a entrar no desemprego. Candidatou-se a um projecto
do Instituto de Emprego e Formação Profissional e, recebendo o
subsídio por inteiro, abriu uma loja na Baixa. Apesar da sua enorme
força de vencer, mareando num oceano cheio de ondas alterosas, as
dificuldades, sobretudo pela queda acentuada da procura, foram sempre
mais do que muitas. Porque não há corpo que aguente tanto stress e
preocupação, sem dormir em noites brancas repetidas, naturalmente
tinha de estourar. Há cerca de um ano atrás foi acometido de um
AVC, Acidente Vascular Cerebral. Esteve internado nos HUC cerca de
dois meses. Neste tempo de internamento, cheia de stock no
estabelecimento, a loja funcionou a meio-gás graças a amigos e
familiares. Combalido, aspecto magro e frágil, com voz enrouquecida,
teve alta para convalescença e com baixa médica na sua residência.
Teoricamente deveria ter permanecido em casa a descansar e recuperar.
Mas, se fosse, quem vendia as centenas largas de artigos para assegurar os
compromissos aos fornecedores? E, como predestinado que tem
obrigatoriamente de percorrer um caminho mesmo que seja errado à luz
das convenções, esquecendo a doença e a sua notada debilidade, foi
trabalhar para a loja.
Focando
o caso 1, depois de uma negociação difícil entre todos os
credores, incluindo o Estado através da Segurança Social e a
Autoridade Tributária -estes, que lhe atribuíram mensalidades
fixas-, tentando convencê-los de que tinha ânimo suficiente para
continuar a lutar e pagar a quem devia, reabriu a sua loja à cerca
de um ano, como é óbvio, cheio de dificuldades mas disposto a
cumprir.
Uns meses mais tarde veio
o custo administrativo das negociações entre as partes: 4000 euros.
Repito, por extenso, quatro mil euros de custas de processo. Não é
preciso ser contabilista para ver que esta importância para um
empresário falido é uma fortuna. Dividiu em parcelas mensais e
continuou a remar em direcção ao cais da esperança.
A semana passada recebeu
uma comunicação do fisco a informar que havia ainda coimas, por
atraso no pagamento de impostos anteriores, por acertar.
Lamentando profundamente
ter escolhido o caminho de tentar acertar a vida, de lágrimas nos
olhos, interrogava-me: “que Estado é este, que castiga desta
maneira quem trabalhou a vida inteira e, levando um tropeção, teima
em limpar a face? Será que há uma intenção premeditada de
empurrar quem arrisca para o abismo?”
Incidindo
no caso 2, há cerca de três semanas a fiscalização da Segurança
Social varreu quase a eito todas as lojas da Baixa. Porque o destino
por vezes é maldito, como é de supor, apanhou o nosso amigo
comerciante, que devia estar em casa de baixa médica mas não podia
porque os credores não querem saber de doenças, com a loja aberta e
atrás do balcão à espera de um cliente que não prometeu ir. De
pouco importou o seu ar cansado, vulnerável e de voz enrouquecida. O
que se viu ali, como matéria indiciária, era que foi apanhado com o
pé em ramo verde. Atenuantes para uma declarada ilicitude deste
género não estão previstas. Consequência? Não se teve em conta o seu estado de enfermo e foi-lhe retirada a baixa. Se economicamente mal estava,
adivinha-se, muito pior ficou.
Hoje, com os olhos a
lutar para não serem alagados por lágrimas de dor, dizia-me: “estou
farto desta vida! Já não aguento muito mais! Um dia destes, sem
querer saber das consequências, fecho a porta!”
Pode
até parecer que estou a defender a ilegalidade. Não é isso. Bem
sei que não é fácil fazer de advogado do diabo. Mas alguém tem de
gritar, BEM ALTO, que a administração -com todo respeito pelo seu
trabalho- está demasiadamente focada no legalismo e insensível aos
problemas humanos.
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