Para
uma maioria de conimbricenses, a porta número 92 da Rua da Sofia
será simplesmente mais uma entrada para um edifício setecentista
numa artéria classificada, pela UNESCO, como Património da
Humanidade. Como muito outro edificado desconhecido nesta antiga rua
dos colégios, visto de fora, será avaliado como mais um património
morto, decrépito, sem actividade e sem alma no seu interior de
paredes de pedra com um metro de largura.
Tudo
começa pelas 08h00 quando crianças meio-ensonadas, acompanhadas
pelos pais, sobem as escadas ladeadas com azulejo século XVII até
ao segundo andar. Em baixo, em cima do passeio, sem lugar para
estacionamento adequado e para o efeito, viaturas, utilitárias e já
com muitos anos de rodado, ficaram por momentos abandonadas e
sujeitas a uma coima de um agente municipal pouco compreensivo. Se
assim acontecer, e acontece demasiadas vezes, o magro ordenado irá
encolher e em algum lado se irá reflectir, mais que certo na mesa e
nas refeições pouco abonadas em calorias.
Para
uns, para os que ainda têm trabalho, o tempo falta para chegar a
horas ao emprego e pouco mais cresce do que dar um beijo furtivo ao
miúdo e deixá-lo aos cuidados de uma das funcionárias do
jardim-de-infância e tempos-livres. Para outros, há muito sem
salário fixo, desempregados de longa duração, vindos das ruas
estreitas da Baixa, onde o Sol só toca o chão a partir do Verão e
o cheiro a pobreza se entranha nos locatários do casario de antanho,
de intra-muros e dos subúrbios da cidade, desde a Adémia, Ingote,
Santa Clara e até Montemor-o-Velho. Logo de manhã, num corrupio de
abelhas em busca de pólen, pressente-se naquele errante calcorrear
de calçada um espírito de missão, a esperança de oportunidades
que fintem a desigualdade marcada a ferros de estigma e um amanhã
melhor para os petizes. Para qualquer um destes progenitores este
espaço solidário é um porto de abrigo, um lugar seguro na cidade
alheia aos problemas individuais, uma possibilidade de proporcionar o
indispensável aos seus filhos já que, para muitos deles, devido à
carência económica, não lhes seria possível dar-lhes o mínimo
exigível.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Para
quem já detém cabelos brancos, deve recordar, no início da década
de 1970, a Baixa e a Alta com hordas de miúdos maltrapilhos e
descalços, oriundos de famílias numerosas paupérrimas, a
estenderem a mão à caridade nas ruas e nas entradas dos cafés.
Embora o hábito ratificasse o costume e tornasse insensível o olhar
do cidadão comum, a verdade é que a moralidade do Estado Novo
dormia muito bem com esta chaga social.
Veio
a revolução de Abril de 1974. Foi então que, em Outubro do mesmo
ano, um grupo de moradores da Zona Histórica, constituído em
comissão, para dar solução a estes quadros negros de miséria
infantil que fustigavam a Baixa, decidiram fundar o Centro Social e
Cultural 25 de Abril, na Rua da Sofia número 92, segundo andar.
Talvez pelos odores revolucionários impregnados na acção só seria
legalizada como associação em 1982 e nessa altura, por parte da
Segurança Social, foi reconhecido o alto valor humanitário e
constituídos acordos para prosseguir o objecto para que tinha sido
criada a instituição. Até aos nossos dias, teriam passado por aqui
milhares de crianças que, sendo adultos hoje, estarão eternamente
gratos aos esforços desenvolvidos por uma equipa guiada pelo lema:
fazer bem sem olhar a quem.
E NA
ACTUALIDADE? COMO É QUE É?
Hoje
sobre o leme de Sandra Campos, directora técnica e a trabalhar na
instituição há 24 anos, o Centro Social e Cultural 25 de Abril,
como barco a precisar de ir ao estaleiro, contra ventos e marés,
continua fiel ao seu destino. Porém com muitas dificuldades.
“Como
utentes, temos 120 crianças, entre os três e os doze anos,
divididas entre jardim de infância e tempos livres, com lotação
esgotada e uma enorme lista de espera” -enfatiza Sandra, uma
relações-públicas simples, sem peneiras, cuja atribuição de
idade será indefinida, de mangas arregaçadas e, intuo, habituada a
colocar as mãos na massa e a fazer tudo para que todas as
crianças, sem excepção e independentemente do extracto social, não
se apercebam das imensas dificuldades diárias.
Prossegue
Sandra, “os órgãos sociais são constituídos pelos pais das crianças que
frequentam a casa ou já frequentaram. O amor à camisola é
diariamente uma prova dada por todos, desde qualquer funcionário até
ao presidente, o José Cruz, que, numa entrega total, há vários
anos dá aqui muito do seu tempo.
Os
nossos maiores espinhos, que tolhem os nossos movimentos diariamente,
são as dificuldades financeiras dos agregados familiares dos miúdos.
Cerca de oitenta por cento (sobre)vivem com carências económicas.
Repare que proporcionamos a todas as crianças o pequeno-almoço, a
seguir, a meio da manhã, um reforço e depois o almoço. A meio da
tarde, damos o lanche, horas depois, ao cair da tarde, um reforço
alimentar e, para os utentes mais necessitados, ainda enviamos
jantar. Notamos que o bem-estar das famílias está a deteriorar-se.
Temos 15 miúdos que estão a ser acompanhados pela CPCJ, Comissão
de Proteção de Crianças e Jovens.
Mantemo-nos
no fio da navalha. Quinze por cento das famílias associadas não
pagam. Noventa e cinco por cento pagam até 40.00 euros. Só para
cinco por cento a mensalidade vai acima dos 50.00 euros. A mais
elevada é de 118.00 euros.
Tenho
de confessar que estamos a entrar em rotura financeira. Os ordenados
dos 12 funcionários estão a começar a ser melindrados. Neste mês
de Julho, estamos a liquidar o Maio -obviamente com algum atraso.”
O
IGUALITARISMO QUE PROVOCA DESIGUALDADE DA SEGURANÇA SOCIAL
Prossegue
Sandra Campos, directora do Centro Cultural e Social 25 de Abril,
“o nosso maior problema são os critérios de atribuição de
verbas publicadas em Diário da República e distribuídas pela
Segurança Social. As tabelas são atribuídas a todos por igual sem
levar em conta as carências económicas dos agregados familiares,
como é o nosso caso. Tanto recebemos nós, como o jardim-escola João
de Deus, a Bissaya Barreto, ou qualquer IPSS, Instituição
Particular de Solidariedade Social, nas mesmas condições
consignadas nas tabelas. Ora, está de ver, tendo em conta as forças
de cada entidade, o fosso é enorme.
O
que nos vale são as imensas ajudas desinteressadas de cidadãos
anónimos que entendem o nosso objecto social.”
E
OS POLÍTICOS DA NOSSA PRAÇA?
“Com
franqueza, só temos de agradecer o empenho do Dr. Jorge
Alves, responsável pelo pelouro da Acção Social e Família e
vereador da Câmara Municipal de Coimbra. Já reunimos várias vezes
este ano e, tenho a certeza, pela sua grande experiência na área
social, reconhece o valor e a importância que desempenhamos na
comunidade. O esforço deste edil tem sido inexcedível no apoio. A
divisão que superintende tem sido o nosso abrigo. Assim como também para a União das Freguesias agregadas o nosso muito obrigado. Temos
batido a todas as portas! Infelizmente, mesmo assim, a situação
está a piorar. Como náufragos em mar alto, em nome das nossas
crianças, precisamos de auxílio.”
E
O QUE DIZ O PRESIDENTE?
José
Cruz, reconhecido empresário hoteleiro, sócio do vetusto Café
Santa Cruz, é o presidente da direcção e, desempenhando várias
tarefas, está no Centro Cultural e Social 25 de Abril há cerca de
uma dezena de anos. Com algum pesar, lamentando as ondas alterosas
que a instituição que comanda atravessa, vai dizendo: “estamos
implementados numa zona problemática, que abarca a Baixa e outras áreas com manchas elevadas de pobreza, com o desemprego a aumentar. As
famílias, sem emprego, sem rendimentos, têm muitas dificuldades. O
Centro Social está há sete anos com resultados negativos. E o que
mais me preocupa é que a situação tende a agravar-se. Apelo às
entidades responsáveis, ao tecido social da cidade, da Baixa em
particular, que nos ajudem nesta aflição. São 120 crianças que
precisam de todos nós.
Aproveito
este meio para agradecer encarecidamente ao vereador Jorge Alves, da
Câmara Municipal de Coimbra, ao Dr. Jorge Antunes e ao senhor Hélder
Abreu, da União de Freguesias agregadas, ao senhor Victor Marques,
presidente da APBC, Agência para a Promoção da Baixa de
Coimbra, que recentemente organizou a campanha do “Bacalhau
Solidário”, cuja verba será entregue brevemente. Gostaria também
de enviar um agradecimento ao presidente do executivo, Manuel
Machado, que, embora ainda não nos recebesse pessoalmente, tem
delegado no vereador do pelouro, Dr. Jorge Alves.
Apesar
de insuficiente, é por verificar que somos apoiados que continuo a
exercer o cargo de presidente desta tão digna e meritória
associação.
Por
último, como quem não pede não ouve Deus, gostaria de chamar a
atenção do executivo para as nossas depauperadas instalações.
Apesar de algum conflito latente entre o proprietário do edifício e
o Centro Cultural, o inquilino, levantando a bandeira do bem-fazer
social, temos tentado prosseguir o nosso caminho. Contudo, apesar de estar muito longe do necessário, só teremos sede
assegurada até 2021. Após esta data o senhorio pode resolver o
contrato de arrendamento.”
Sem comentários:
Enviar um comentário