sábado, 16 de julho de 2016

EDITORIAL: A FÁBRICA DE HERÓIS PRÉ-FABRICADOS





É sabido que, desde os confins da História Universal, os regimes políticos utilizaram e utilizam a homenagem pública como uma espécie de masturbação intelectual de todos os da mesma cor. No fundo, é como da mesma forma que a Igreja Católica, para se renovar de fora para dentro -contrário ao que deveria ser-, sente necessidade de apresentar novos beatos e candidatos a santos, as instituições partidárias, seguindo o mesmo exemplo, para se manterem vivas, tenham de recorrer a ícones com pés de barro e estejam continuamente a criar falsos deuses profanos.
Por cá, até finais do século XIX, na Monarquia, foi um desvario de comendas para tentar sustentar o regime real, tão bem retratado por Rafhael Bordallo Pinheiro, n'A Paródia de 1900, e pela pena de Almeida Garret, na primeira metade do século do liberalismo em Portugal, que criou o aforismo “foge cão que te fazem barão”.
Com a implantação da primeira República, em 1910, o que tanto era criticado pela oposição ao regime, continuou com o mesmo delírio na distribuição de comendas públicas. Com a subida de Salazar ao poder, como ministro das Finanças em 1928, parece-me, passou a haver alguma contenção na atribuição de homenagens públicas. No entanto, sem dados históricos, julgo que a partir de 1933, com a consagração do Estado Novo como regimento autoritário e a plena glorificação e adoração nacional do homem forte de Santa Comba Dão, os galardões passaram a incidir directamente no Presidente do Conselho. É óbvio que, embora de certo modo alheio a homenagens, Salazar usou e abusou das comendas como forma de “comprar” adversários mais permeáveis e sensíveis à vaidade. Marcello Caetano, delfim de Salazar, seguiria a mesma bitola mas, digo eu, sempre com um “low profile”, uma discrição implícita.
Com a terceira República, com o início do período do 25 de Abril de 1974, (re)começou o regabofe na distribuição de títulos nobiliárquicos. As Ordens Honoríficas do Estado Português, desde arma política, passaram a servir para tudo menos para o objecto que foram criadas -seria interessante saber quantas comendas e comendadores temos a circular no país sem a devida vénia, naturalmente.
Começou com Ramalho Eanes, que atribuiu 2.005 medalhas, e passando por Mário Soares foi um forçar vilanagem. Vale a pena citar o jornal online Observador, “Enquanto Presidente da República, Soares abusou como ninguém das distinções honoríficas do Estado Português. Não há praticamente nenhum amigo que não tenha recebido uma condecoração, enquanto outros cidadãos, que tanto mereceram, não obtiveram qualquer distinção durante o seu ‘reinado‘”. Quem o disse? António Marinho e Pinto, então jornalista do Diário do Centro, a 15 de março de 2000, ainda longe de se tornar bastonário da Ordem dos Advogados, mas já uma figura controversa.
Continuando a citar o Observador, Mário Soares foi quem mais abraçou agraciados. A um ritmo de quatro condecorações por semana, Soares distinguiu 2.505 pessoas.
Seguiu-se Jorge Sampaio com 2.374 homenagens. “No último ano de mandato como Presidente da República, entre 2005 e 9 março de 2006, Jorge Sampaio foi muito mais generoso do que os seus antecessores e atribuiu um total de 802 condecorações  –a um ritmo de quase duas condecorações por dia.
O mais modesto foi Cavaco Silva, que só assinalou pouco mais de 1.100 feitos heróicos. Já no final de mandato viria a condecorar muitos dos seus pares partidários que faltavam subscrever no recordatório nacional. Mas não foi só, também não se livrou da polémica ao não condecorar Salgueiro Maia, Capitão de Abril, bem como José Saramago, Prémio Nobel da Literatura -aliás, numa falta de respeito, nem no funeral do escritor se apresentou.
E, há escassos meses, foi entronizado Marcelo Rebelo de Sousa. No começo do seu "reinado" foi notório um discurso contra as homenagens públicas a esmo. Mas foi sol de pouca dura. Com a pressa em condecorar os jogadores da Selecção Nacional -colocando até de lado outros campeões laureados recentemente-, Marcelo veio dar o dito por não dito. Aliás, era de prever. Tendo um carácter popular -a raiar o populismo gratuito-, é de prever que, nos próximos dez anos, a metade de portugueses que falta para ter uma medalha a vá ter. É uma questão de tempo e paciência.
O curioso é que as autarquias até seguiram o exemplo do Chefe de Estado e, nestes primeiros meses deste ano, até foram contidas. É evidente que não deixaram de homenagear. Porém, dando o exemplo de Coimbra, foram distinguidas duas personalidades ligadas ao aparelho socialista, que suporta o executivo municipal. Um dos reverenciados, Jorge Lemos, já falecido -uma óptima pessoa que tive o grato prazer de conhecer-, foi-lhe atribuída uma rua para perpetuar o seu nome. Outro, António Arnault, felizmente de boa saúde, para além da deferência, foi honrado com um busto no Parque da Cidade.
É evidente que, como em tudo, há sempre os que concordam plenamente com estas glorificações. Naturalmente, como é o caso, há aqueles cidadãos que, no seu direito legítimo, discordam e, pelo exagero e abuso de posição dominante na distinção, manifestam a sua indignação.
Já que os proponentes das distinções parecem não enxergar, em nome da dignidade nacional que deve superintender este nobiliárquico acto público, fica o apelo para que os futuros nomeados, em nome da honra, deixem de aceitar tais tributos. É que, sem o sentirem, estão a contribuir para a discriminação negativa de cidadãos que muito fizeram pela cidade (ou pelo país) e nunca foram laureados. Um exemplo, entre vários, em Coimbra? Mário Nunes!

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