É
sabido que, desde os confins da História Universal, os regimes
políticos utilizaram e utilizam a homenagem pública como uma
espécie de masturbação intelectual de todos os da mesma cor. No
fundo, é como da mesma forma que a Igreja Católica, para se renovar
de fora para dentro -contrário ao que deveria ser-, sente
necessidade de apresentar novos beatos e candidatos a santos, as
instituições partidárias, seguindo o mesmo exemplo, para se
manterem vivas, tenham de recorrer a ícones com pés de barro e
estejam continuamente a criar falsos deuses profanos.
Por
cá,
até finais do século XIX, na Monarquia, foi um desvario de comendas
para tentar sustentar o regime real, tão bem retratado por Rafhael
Bordallo Pinheiro, n'A
Paródia de 1900,
e pela pena de Almeida Garret, na primeira metade do século do
liberalismo em Portugal, que criou o aforismo “foge
cão que te fazem barão”.
Com
a implantação da primeira República, em 1910, o que tanto era
criticado pela oposição ao regime, continuou com o mesmo delírio
na distribuição de comendas públicas. Com a subida de Salazar ao
poder, como ministro das Finanças em 1928, parece-me, passou a haver
alguma contenção na atribuição de homenagens públicas. No
entanto, sem dados históricos, julgo que a partir de 1933, com a
consagração do Estado Novo como regimento autoritário e a plena
glorificação e adoração nacional do homem forte de Santa Comba
Dão, os galardões passaram a incidir directamente no Presidente do
Conselho. É óbvio que, embora de certo modo alheio a homenagens,
Salazar usou e abusou das comendas como forma de “comprar”
adversários mais permeáveis e sensíveis à vaidade. Marcello
Caetano, delfim de Salazar, seguiria a mesma bitola mas, digo eu,
sempre com um “low
profile”,
uma discrição implícita.
Com
a terceira República, com o início do período do 25 de Abril de
1974, (re)começou o regabofe
na distribuição de títulos nobiliárquicos. As Ordens Honoríficas
do Estado Português, desde arma política, passaram a servir para
tudo menos para o objecto que foram criadas -seria interessante saber
quantas comendas e comendadores temos a circular no país sem a
devida vénia, naturalmente.
Começou
com Ramalho Eanes, que atribuiu 2.005 medalhas, e passando por Mário
Soares foi um forçar vilanagem. Vale a pena citar o jornal online Observador, “Enquanto Presidente da República, Soares abusou
como ninguém das distinções honoríficas do Estado Português. Não
há praticamente nenhum amigo que não tenha recebido uma
condecoração, enquanto outros cidadãos, que tanto mereceram, não
obtiveram qualquer distinção durante o seu ‘reinado‘”. Quem
o disse? António Marinho e Pinto, então jornalista do Diário
do Centro, a 15 de março de 2000, ainda longe de se tornar
bastonário da Ordem dos Advogados, mas já uma figura controversa.”
Continuando
a citar o Observador, Mário Soares foi quem mais abraçou
agraciados. A um ritmo de quatro condecorações por semana, Soares
distinguiu 2.505 pessoas.
Seguiu-se
Jorge Sampaio com 2.374 homenagens. “No último ano de
mandato como Presidente da República, entre 2005 e 9 março de 2006,
Jorge Sampaio foi muito mais generoso do que os seus antecessores e
atribuiu um total de 802 condecorações –a um ritmo de quase
duas condecorações por dia.”
O
mais modesto foi Cavaco Silva, que só assinalou pouco mais de 1.100
feitos heróicos. Já no final de mandato viria a condecorar
muitos dos seus pares partidários que faltavam subscrever no
recordatório nacional. Mas não foi só, também não se
livrou da polémica ao não condecorar Salgueiro Maia, Capitão de
Abril, bem como José Saramago, Prémio Nobel da Literatura -aliás,
numa falta de respeito, nem no funeral do escritor se apresentou.
E,
há escassos meses, foi entronizado Marcelo Rebelo de Sousa. No
começo do seu "reinado" foi notório um discurso contra as homenagens
públicas a esmo. Mas foi sol de pouca dura. Com a pressa em
condecorar os jogadores da Selecção Nacional -colocando até de
lado outros campeões laureados recentemente-, Marcelo veio dar o dito
por não dito. Aliás, era de prever. Tendo um carácter popular -a
raiar o populismo gratuito-, é de prever que, nos próximos dez
anos, a metade de portugueses que falta para ter uma medalha a vá
ter. É uma questão de tempo e paciência.
O
curioso é que as autarquias até seguiram o exemplo do Chefe de
Estado e, nestes primeiros meses deste ano, até foram contidas. É
evidente que não deixaram de homenagear. Porém, dando o exemplo de
Coimbra, foram distinguidas duas personalidades ligadas ao aparelho
socialista, que suporta o executivo municipal. Um dos reverenciados,
Jorge Lemos, já falecido -uma óptima pessoa que tive o grato prazer de conhecer-,
foi-lhe atribuída uma rua para perpetuar o seu nome. Outro, António
Arnault, felizmente de boa saúde, para além da deferência, foi
honrado com um busto no Parque da Cidade.
É
evidente que, como em tudo, há sempre os que concordam plenamente
com estas glorificações. Naturalmente, como é o caso, há aqueles
cidadãos que, no seu direito legítimo, discordam e, pelo exagero e
abuso de posição dominante na distinção, manifestam a sua
indignação.
Já que os proponentes das distinções parecem não enxergar, em nome da dignidade nacional que deve superintender este nobiliárquico acto público, fica o apelo para que os futuros nomeados, em nome da honra, deixem de aceitar tais tributos. É que, sem o sentirem, estão a contribuir para a discriminação negativa de cidadãos que muito fizeram pela cidade (ou pelo país) e nunca foram laureados. Um exemplo, entre vários, em Coimbra? Mário Nunes!
Já que os proponentes das distinções parecem não enxergar, em nome da dignidade nacional que deve superintender este nobiliárquico acto público, fica o apelo para que os futuros nomeados, em nome da honra, deixem de aceitar tais tributos. É que, sem o sentirem, estão a contribuir para a discriminação negativa de cidadãos que muito fizeram pela cidade (ou pelo país) e nunca foram laureados. Um exemplo, entre vários, em Coimbra? Mário Nunes!
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