Na estrada de
bom asfalto, que divide Portugal em dois, o autocarro saído de Coimbra
parcialmente cheio, rompendo montanhas, rodava a bom rodar em direcção à
Covilhã. Olhando as vias largas e modernas, apesar de pouco tráfego automóvel,
temos impressão que estamos num país superdesenvolvido, onde não há malhas de
pobreza, e estes caminhos modernos estão ao serviço do progresso, comercial e
industrial, dos habitantes do interior. Desviando o olhar para as margens da
estrada constatamos o paradoxo da modernidade e do Apocalipse: fábricas,
armazéns, estabelecimentos, oficinas, instalações várias que deram trabalho a
milhares de pessoas, numa paisagem triste e acinzentada, mostra quase tudo encerrado.
Como num cenário decrépito, estas casas fechadas, degradadas e a cair como
esqueletos a pairar, parecem fazer parte de um teatro de guerra e em que o terror
assentou praça. Apetece perguntar ao vento que fustiga a moderna camioneta da Transdev, a multinacional francesa que
veio ocupar a antiga Rodoviária Nacional, quem foram os exterminadores desta
política de terra-queimada, onde estas pequenas indústrias foram a infantaria
dizimada e sacrificada para dar lugar a grandes investidas capitalistas que,
sem apelo nem agravo, desertificaram cidades, vilas e aldeias desta nação à
beira-mar plantada. A miséria está ao alcance de um olhar. No ónibus, os passageiros, maioritariamente
jovens entretidos a clicar nos seus smartphones,
envolvidos pela modorra do silêncio e embrulhados nos seus pensamentos, aparentemente,
não se dão conta da catástrofe que perpassa perante os seus olhos na rapidez da
velocidade da luz.
De repente, um aflito grito de mulher, saído
das cavernas da alma, ecoa nos bancos da frente do autocarro: “Ai, senhor motorista, esta não é a direcção
de Leiria! Eu venho do Porto e vou para a Nazaré! Pensei que era directo!”. Estava
dado o mote para muitos como eu, retesado e de orelhas à escuta, não perdermos
pitada e, como analistas de comportamentos sociais, começarmos a apontar a
forma como cada um se portaria em face da pequena tragédia da passageira em
busca de uma rota perdida.
À sua interpelação, o
profissional do volante, com voz bem vincada, respondeu à defesa: “minha senhora, de facto, este carro vem do
Porto mas vai para a Covilhã. Em Coimbra avisei, alto e bom som para todos
ouvirem, que quem tinha outros destinos teria de fazer transbordo”. A viajante
pesarosa, tudo em segundos, numa primeira fase, em ataque, mistura de ira e
desolação, começou por contraditar o funcionário da Transdev, dizendo que não se apercebeu do anúncio, para numa
segunda, em voz calma e pausada, apelar à solução do seu problema. Mais que
certo pelo tom cordato da turista acidental que perdera a ligação, o “chauffeur”, reagindo a que comportamento
gera comportamento e que ser generoso é passar para o lugar do desesperado,
sintonizando a resposta como cavalheiro a tentar ajudar uma dama em apuros,
suavizou: “pois, agora a senhora tem de
ir até Castelo Branco e, nesta cidade, apanha uma ligação para Coimbra, que
chegará cerca da meia-noite!”.
Entretanto uma rapariga,
provavelmente estudante, sensibilizada e tentando ajudar com a informação de um
smartphone meteu-se na conversa e
retorquiu que, partindo de Castelo Branco, havia uma ligação para Leiria a tal
hora a seguir. Respondeu o homem do guiador que essa não dava porque a carreira
em que se seguia não chegava a tempo.
Dentro do carro de passageiros,
sem se ver mas a pressentir-se, estava gerada uma onda de solidariedade que
impunha uma solução para a senhora perdida. O condutor, na procura de uma
alternativa que resolvesse aquele drama unipessoal mas transmissível a todos,
começou a contactar a central de Coimbra na procura de uma solução possível. A
jovem do portátil interrompeu novamente que havia uma ligação para Leiria a
partir de Coimbra. O motorista respondeu que essa não dava tempo. Nova
comunicação para a gare de Coimbra porque seguia um autocarro à nossa frente e
que dava ligação de retorno imediato para Coimbra. Se fosse avisado e parasse na
berma da estrada a senhora faria o trasbordo e minimizaria o transtorno. O
condutor, falando para todos à laia de explicação, disse que ia fazer um
pequeno desvio para não perder o carro da frente e até receber ordens de
Coimbra. Mas de Coimbra não chegava informação. Então começou a fazer sinais de
luzes ao da frente, a grande máquina estancou, o profissional da estrada foi
falar com o colega e a senhora transviada, comovida, agradeceu a todos a ajuda
prestada e mais acentuadamente ao funcionário da Transdev. Alguém que seguia e presenciou tudo, como a representar
todos os passageiros, fez um curto discurso salientando a benevolente ajuda do
condutor e o quanto este seu gesto representava para a sua classe profissional
e para a sua empresa. E naquele autocarro, neste Dezembro com espírito de Natal
onde a nobreza é mais valorizada e bem recebida, ouviu-se uma grande ovação de
agradecimento ao condutor de nome António Valério.
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