quarta-feira, 20 de junho de 2007

UM CRUZEIRO INESQUECÍVEL

João tem trinta e três anos. Como Cristo crucificado, já sofreu na carne a maldade dos homens e a desdita da sorte que, só depois de assediada, depois de muito tentada, duma forma arbitrária, bafeja os eleitos, enrolando-os no manto da sua generosidade. Mas João não tinha modos, não a conquistava. Ao longo da sua vida teve uma panóplia de curtos empregos. Embora esperto e desenrascado, alheio a convencionalismos, foi na rua que adquirira o seu mestrado, o rapaz nunca apostou na formação nem no conhecimento escolar. Detestava o esforço e muito mais o sacrifício, essas premissas eram para os outros, não para si. Sempre preferiu o biscate e o trabalho de remendo, a estar preso a compromissos que lhe limitavam a sua ansiedade de liberdade.
Aos vinte e cinco anos encontrou a sua Maria que, embora não sendo muito inteligente, tinha uns cobres de seus e um andar na cidade e João, sem hesitar, não foi de modos, engravidou-a e casou. Quem não ficou muito contente foram os pais de Maria que, mesmo mal o conhecendo, anteviram um tempo pouco risonho para a filha. Mas esta não os escutou.
A mania que os velhos têm de sempre quererem meter-se em tudo, armados em donos e senhores duma verdade e dum futuro que só a ela pertencia. Para mal de Maria eles tinham mesmo razão. Hoje, com um filho nos braços e sem rasto do pecúlio amealhado, há muito desperdiçado em negócios pouco claros pelo marido, a rapariga de idade, mas mulher de alma rugosa e envelhecida, torce a orelha, mas, por orgulho, prefere sofrer em silêncio a ter de admitir que os seus pais tinham razão.
Há dois meses, João viu um anúncio num jornal diário, de grande tiragem nacional, a pedir empregados para trabalhar num cruzeiro no alto mar. Telefonou para o número indicado, era do Algarve, de um hotel em Loulé. Sem delongas, partiu para a entrevista. Em terras algarvias, foi recebido por um senhor simpatiquíssimo e prestável. Tão prestável que nem o facto de João nunca ter trabalhado em hotelaria fora óbice, aos olhos do rapaz, o homem era generoso e espectacular. O ordenado era tentador, cerca de 4000 euros mensais a trabalhar como “assistwatter”, como quem diz, assistente de bordo. E assim ficou combinado, sem nenhum contrato de trabalho assinado, João partiria de avião, de Lisboa até Madrid e daqui até à Grécia, à ilha de Piraeus.
No dia acordado, com bilhete de ida e volta, não fosse o diabo tecê-las –pensara e bem- o rapaz parte de Lisboa para Madrid de avião, para fazer escala e mudar de voo. Mas já aqui a sorte, como a querer testar João, prega-lhe uma partida: no placard do aeroporto, escrito em espanhol, informa-se que o seu voo para Atenas fora adiado para quatro horas depois. O viajante iniciado espera e desespera por nova chamada que não chega. Vai informar-se novamente ao balcão e para sua surpresa o avião partira à hora marcada. De balcão em balcão, João tenta que o entendam e manifestar a sua indignação. A muito custo lá consegue reclamar por escrito. No dia seguinte parte então de vez em direcção à ilha de Piraeus, na Grécia.
No porto, desta Ilha, como a desafiar os oceanos e a ansiedade do futuro cavaleiro andante dos mares, um imponente Cruzeiro transatlântico de cor azul-marinho. Na proa, pintadas a esmalte branco, as letras, com o nome de baptismo do dominador dos mares mediterrânicos, que João, por muito que sobreviva, jamais esquecerá: OCEANIC.
Num Domingo, João, cruzador das ruas e vielas de Coimbra, feito marinheiro à pressa nas ondas que movem o sonho, conjuntamente com uma plêiade de nacionais de vários continentes, parte em direcção ao alto mar. Vão começar aqui os seus verdadeiros problemas. Segundo o chefe de pessoal, por acaso português, não havia lugar como “assistwatter” para o conimbricence. O único lugar disponível seria o de “snackstuart”, uma espécie de “faz–de-tudo”, e em que iria trabalhar em conjunto com chilenos, búlgaros, argentinos e hondurenhos. A convivência com outros povos não era problema. A verdadeira questão era a súbita desqualificação no ordenado, João passaria a auferir apenas cerca de 500euros. Como se esta sorte madrasta, feita por homens, não chegasse, João teria, tal como os outros transnacionais, de trabalhar 18 horas por dia e a comer quase ração de combate. O que lhe valia às vezes era comer doces à mão cheia, surripiados à socapa da travessa de algum passageiro. Várias vezes, na amurada, João, olhando para a foto da sua menina, perguntava a si mesmo: “salto e acabo de vez com isto?”
Durante vinte dias, sem o querer, João-sem-terra e muito mar, foi escravo, escravizado à força, até chegar à Ilha de Rhodes, onde conseguiu trocar o seu bilhete de avião e assim regressar novamente à sua terra. Quando desembarcou em Lisboa, além de trazer a carteira vazia, uma enorme sede de saudade e um estômago vazio, vinha muito mais leve: emagrecera 15 quilos. E como lição de vida, Cruzeiros nunca mais.

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