sábado, 23 de junho de 2007

A FEIRA DE VELHARIAS




  É sábado, são 5h30 da manhã, o senhor Joaquim e a esposa estacionam a carrinha no largo da cidade, mais vulgarmente conhecido por Praça Velha. Se as pedras centenárias da calçada falassem quantas “istórias” contariam, quantas lágrimas caídas ao longo dos séculos, de mercadores sofridos de produtos vários, de latoaria, de géneros hortícolas, cebolas, alfaces, tomates, que tal, como o vendedor de velharias, também teriam vindo dos arrabaldes da cidade, muito cedo, montados no seu jumento, e, depois de o ter prendido pelas rédeas no Pelourinho, também teriam exposto toda a sua mercadoria e acompanhados do pregão, criado na ocasião, tentariam chamar os fregueses.
Tal como há cem anos atrás, o senhor Joaquim estende a manta no chão e, com o carinho pelas suas peças como só uma mãe sente por um filho, começa a expô-las, afagando-as com as mãos calejadas, como se com esse gesto as tornasse mais brilhantes aos olhos do futuro comprador. Embora a luz de Junho comece a despontar, à sua volta ainda reina o silêncio adormecido da cidade. Ali perto, um gato preto mia e o seu grito estridente ecoa no largo, como se reclamasse de, poucas horas antes, os homens da higiene da cidade, sem nenhuma sensibilidade, tivessem limpo tudo e lhe coarctassem o seu legítimo direito de minguar a sua fome num qualquer jacob de entulho e lixo.
Perante o miar do gato o senhor Joaquim deu um salto. Assustou-se. "Bolas, ainda por cima preto. Porra!", pensou para si. De certeza que o dia lhe iria correr mal, era sempre assim. Sem o querer, foi incorporando esta superstição. Ele sabia, era sempre assim, ainda há pouco, em Aveiro, aconteceu a mesma coisa e nem o poder de Santo Onofre, mesmo junto a seus pés, como se estivesse a fitá-lo, de costas para os compradores, valia contra o mau presságio dum gato preto. Começou a praguejar uma ladainha por entre dentes. A senhora Maria, a esposa, já o conhece bem, talvez melhor que a ela própria, e já sabe, nestes casos o que tem de fazer para puxar o homem à razão. Solta um chorrilho de pragas, misturadas com insultos ao marido, clamando contra a sua crendice, e, normalmente, o homem acalma e prega os pés no chão. Só que desta vez, mal ela estava a começar a lengalenga, então não é que o senhor Joaquim deixa cair um prato “ratinho”, que, no contacto com as lajes da calçada, se desfez em mil pedaços? “Vês…mulher…eu não te dizia?!...Eu já sabia…é sempre assim…malditos gatos pretos!…”.
“Cala-te mas é, estupor! Tu é que partes e depois a culpa é do gato?!”-refila, enfurecida a mulher do vendedor de velharias.
Por volta das sete e meia começam a aparecer os primeiros compradores. Os chamados batedores. São estes que vindo mais cedo, tentando antecipar-se a outros, sempre à procura daquela peça especial e, ao mesmo tempo, sabendo muito bem que as melhores compras são as que se fazem logo ao raiar da aurora e ao entardecer, aquando do fecho do certame. As primeiras são sempre boas porque o vendedor de velharias é muito crente em rituais e está ansioso por estrear-se, uma espécie de quebra do hímen e perder a virgindade. Se assim for, acredita, irá ter um dia cheio de vendas. Se tal não acontecer, se a castidade se mantiver durante a manhã, pode regressar a casa sem provar o clímax de uma única venda. 
As compras ao entardecer, aquando do fecho do mercado franco, são igualmente promissoras para o comprador, porque muitos dos vendedores não se tendo estreado, para fazerem algum dinheiro para o regresso a casa, vendem a qualquer preço.
Voltando ao senhor Joaquim, hoje, não está nos melhores dias. Fosse do gato ou do acaso da sorte aziaga, a verdade é que as vendas…”não pintam”. Há dias assim. Vejam bem que uma velha desdentada, de cabelo desgrenhado, cerca das oito horas, nem de propósito, foi oferecer-lhe, para ele comprar, uma colecção de uma dúzia de…gatos pretos em porcelana. Sinceramente, é preciso lata! Irritado como estava e ainda por cima o raio da velhota, parecendo gozar com ele, teimosa que nem uma mula, vai querer que ele compre os gatos. Homessa! Nem pensar! E a velha insistia, “compre-me os gatos, dê-me o que o senhor quiser…seja justo”, declamava em corrupio a persistente senhora. O senhor Joaquim, embora habitualmente calmo, já não podendo ouvir a mulher, passou-se e mandou-a, desabridamente, para o raio-que-a-partisse. A resmungar, a velha foi vender ao colega, mesmo ao lado, os doze gatos pretos por dez euros. O senhor Joaquim respirou de alívio. Francamente! Hoje não era decididamente o seu dia. Tudo girava em volta de gatos pretos. 
Ainda estava a pensar nisto, quando olhou para o lado e viu o seu colega vender a dúzia de gatos, comprados há minutos, por…duzentos e cinquenta euros. 
"Raios parta a minha sorte! Malditos gatos negros e todo o mito de assombração que lhe está associado!", resmungou por entre dentes o vendedor de bric-à-brac.

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