sábado, 2 de junho de 2007

BAIXA DE COIMBRA: O OUTRO LADO DO ESPELHO

(Foto de Alex Ramos)



O recente enterro, em campa rasa, sem direito a epitáfio do projecto de cobertura das Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz celebrado pelo executivo municipal, conduzido e encomendado, na sua oração final, pelo presidente Carlos Encarnação, não deixa de suscitar algumas questões pertinentes: se estava o executivo disposto gastar mais de um milhão de euros na execução de um projecto, apresentado pelo então vice-presidente Pina Prata, em Setembro de 2003, que consistia num projecto de toldos harmonizados, quer na cor, quer no modelo, até com recurso a referendo, e prometendo dar dez mil Euros de prémio à ideia vencedora –o que, como se sabe, não aconteceu- faz sentido questionarmos, então, a razão de muitos dos comerciantes da Baixa estarem a retirarem os seus toldos e os seus reclames para não serem obrigados a pagarem elevadas taxas da sua manutenção à Câmara Municipal?
Já nessa altura, aquando da apresentação do projecto, em Setembro de 2003, neste jornal (no Diário de Coimbra) questionava a razão das exageradas taxas praticadas, em que houve casos de aumentos de 800% e que considerava completamente um paradoxo. Perdoem-me estar a auto-citar-me, mas se nessa data não fazia sentido os elevados custos do concurso, tendo em conta a sua pouca ambição para a cidade, hoje, com este projecto remetido para as calendas, vale a pena tornar a lembrar que os toldos e os reclames, desde que harmonizados esteticamente, podem e devem ser encarados como uma mais- valia na paisagem urbana, não fazendo sentido obrigar os lojistas a prescindirem deles pela incomportabilidade dos custos, e até pela falta de sensibilidade da autarquia que, se por um lado estaria disposta a gastar milhões num concurso demagógico, é inconcebível que não possa prescindir, a bem de todos, de uns milhares de euros que, provavelmente, será uma verba completamente despicienda e irrisória no orçamento anual da autarquia.
Já para não falar na controvérsia da inconstitucionalidade destas taxas, em que continuam a não gerar consenso no Tribunal Constitucional e até em que um caso julgado, em acórdão, foi procedente ao reclamante por se considerar ser um imposto, uma vez não existirem contrapartidas por parte do ente público. Se realmente está a autarquia interessada em ajudar a revitalizar o comércio tem aqui uma boa oportunidade para o mostrar. Além de mais, é altura de se entender que só através de uma acção motivadora concertada é possível manter tudo aquilo que é verdadeiramente tradicional, como é o caso dos toldos e reclames. A propósito, não deixa de ser curioso como os grandes centros comerciais tentam em tudo imitar o comércio de rua, se não atente-se na planificação da sua arquitectura interior: longas “ruas” empedradas em calçada portuguesa, candeeiros “art deco”, com estabelecimentos de fachadas tradicionais, com toldos e reclamos luminosos, bancos de jardim e flores… muitas flores! E agora o mais curioso: estão a começar a contratar artistas de teatro para fazerem de mendigos e até saltimbancos e músicos de rua. Ou seja, por outras palavras, tudo aquilo que é considerado pelo comércio tradicional “dejá vù”, já visto e ultrapassado, a grande área, que não dorme em serviço, tenta retratar cenários de outros tempos, pois sabem que essa memória está inculcada no inconsciente de cada um de nós, mais velhos ou mais novos. E o comércio de rua o que faz? Demagogicamente, tenta modernizar, modernizar, perdendo tudo o que é genuíno; os móveis antigos, a exposição à porta, as roupas e os tecidos pendurados nas entradas dos estabelecimentos, como se, a todo o custo, numa mimética descontrolada, tentasse ir atrás dos grandes centros comerciais… mas ao ralenti. Como se na sua marcha louca e obsessiva pelo modernismo, fosse deixando cair, pelo caminho, a sua genuinidade e calmamente, como velhos sábios do Restelo, o grande comércio vai apanhando, um a um e guardando, os despojos abandonados pelos iluministas revolucionários do novo conceito de “centro comercial em céu aberto”.
Entretanto os centros históricos vão vendo desaparecer tudo o que lhe é típico: as tascas, as velhas mercearias, as velhas lojas de ferragens, o cauteleiro, o ardina, o engraxador, o vendedor de castanhas, os amola-tesouras e até, pasme-se, nos últimos tempos, pela pouca afluência de pessoas, verificarão que são muito menos os mendigos nas ruas da baixinha. E até o velho cego, com a sua inconfundível lamúria, “uma moedinha, por amor de Deus… que Deus lhe pague Senhor!”, desapareceu. O problema é que faz-nos falta toda essa miscelânea de sons inconfundíveis e próprios de uma cultura citadina imanentemente popular. Felizmente (e digo com sinceridade) que ainda nos resta o cantor –tenor, de grande e inconfundível vozeirão-, que vagueia por estas ruas estreitas e vielas e o “aspirante”, cheio de anéis nos dedos e muitas esferográficas, e que, mesmo sendo perturbado psiquicamente, sabe que fazendo teatralmente como ninguém uma cara embevecida, vai conseguindo uma moeda, num discurso laudatório: “tu és Deus… tu és tio-avô… dá-me xinquenta… não me dás?...Pum.. pum! Vais morrer!”



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