sábado, 2 de junho de 2007

HISTÓRIAS DE VIDA-O CLIENTE MIL

HISTÓRIAS DE VIDA -O CLIENTE MIL
Era um dia quente deste Abril, habitualmente frio e de águas-mil. O rapaz, magro, apesar da canícula, vestia um largo casaco, talvez condizente com a sua forma de caminhar algo desconjuntada e um pouco periclitante, quase a pedir desculpa por se manter de pé. A sua indumentária era simples e limpa. Os seus cabelos meio desgrenhados e compridos. Não fora o seu olhar sem brilho, como se de um autómato se tratasse, e, estou em crer, não teria chamado a minha atenção. Era como se ali estivesse personificada a solidão, materializada em figura de gente.
Sem querer, tomado por uma indescritível curiosidade, julgando-me talvez um investigador da National Geografic, perseguindo a sua presa para estudo científico, comecei a mirá-lo com os olhos, sem ele, aparentemente, dar por isso. Ele ia escolhendo as prateleiras e os recantos mais escondidos, eu, como olheiro perspicaz, os ângulos de maior amplitude visual, ia-o seguindo, minuciosamente, em todos os gestos e passos. Reparei que sendo uma média superfície comercial os empregados estavam “à medida certa”, isto é, demasiadamente para menos e, dos poucos, cada um em seu lugar. O cortador de carnes no açougue, dois “caixas” à saída, a receber e a pôr nos sacos as compras. A vigiar não vi ninguém. Olhei para o tecto, estranhamente, também não vi as nossas conhecidas damas de companhia, as nossas queridas câmaras de vigilância.
Perto de mim, outro homem, bem vestido, fato de bom corte e boa gravata, certamente aposentado; Intuí, pela face carregada de rugas vincadas pelo passar do tempo de muitas primaveras que, como outros, também fazia as suas compras. Não lhe prestei grande atenção. Todos os meus sentidos estavam obsessivamente concentrados no rapazola, a meu ver, indigente e carecente de afecto. O rapaz avançava, eu recuava. Entre este jogo do gato e do rato, como quem diz observador e observado, reparei, para minha surpresa, como ele percorria com os olhos perscrutadores todo o grande salão de vendas. Como raio de luz dum farol que intermitente varre o infinito oceano, assim o esquelético comprador procurava a oportunidade e quando ela surgiu…zás! Numa estudada rapidez, uma grossa torta de chocolate já morava no apropriado abafo, certamente adquirido já a pensar na sua elevada e dupla utilidade. A seguir um belo queijo tipo serra. Mais uma olhadela à volta…e, evidentemente e necessariamente, uma boa garrafa de vinho de marca para acompanhar o repasto. Eu, no meu canto, dentro da minha cabeça, travava uma dupla dúvida metódica, como uma batalha existencial: deveria denunciá-lo ou não? E se aquele pequeno desvio, que acabara de presenciar, se destinasse a colmatar o ar famélico do rapaz? E o que iria acontecer? Viria a polícia, certamente por pouco mais de vinte euros, levá-lo-iam para a esquadra e seria indiciado por furto. Além disso, em jeito de balanço, inferi: quem nunca surripiou na vida que levante o braço. Entre os prós e os contras, como a sacudir a água do capote, como juiz em causa própria, e armado em bom samaritano à custa dos outros, decidi não dizer nada. Até porque quem “rouba a ladrão…tem cem anos de perdão”-pensei, já completamente vencido pela minha inépcia e oportuna lassidão. Que diabo, com todos estes pensamentos esquecera-me das minhas compras e puxo, finalmente, do rol.
“CLIENTE MIL…CLIENTE MIL”-ouve-se um grito de alerta, junto às caixas registadoras. Pareciam as sirenes a tocar como aviso da aproximação de um tufão. Olho, então, aproximo-me e vejo que o meu espécime, caso de estudo, representativo da antropologia humana tinha sido apanhado. Na mesma fila da caixa, uma senhora condoída com a sorte que lhe estava reservada, prontifica-se a pagar a sua despesa.
“Não senhor, nem pensar, é um caso de polícia”, replica o gerente, entretanto chamado, ao mesmo tempo que, com brutalidade, empurra o rapaz e este estatela-se ao comprido. Como se não chegasse, o mastodôntico encarregado, crava-lhe, intencionalmente, as manápulas num dos braços e o infeliz ladrão gemeu de dor –“não te mexas ouviste?!” E o rapaz, de ar meio atarantado para ali ficou à espera do que viria a seguir.
O gerente encolerizado, levanta-se, apruma-se, compõe o rosto e, com ar diplomático, dirige-se à outra caixa registadora, de maneira afável e simpática, convida o tal senhor reformado, de bom fato e gravata, a acompanhá-lo ao escritório. É que as tentações não escolhem classes e o homem, todo janota, também tinha sido apanhado no gamanço.
Perante a execrável atitude discriminatória do gerente do supermercado, acabei, também por me indultar e, ao mesmo tempo, perdoar o rapaz. Naquele quadro paupérrimo, parco em equidade, do ponto de vista societário, entre o miserável e o burguês, a desculpabilização ou penalização agravada do furto depende, essencialmente, da classe que rouba.




LUIS FERNANDES
(COIMBRA)

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