sábado, 2 de junho de 2007

BAIXA DE COIMBRA: KO AO 14º ASSALTO




 Quando começa a falar nos anos 60, do século passado, os seus olhos brilham como holofotes numa noite escura. A sua face, normalmente taciturna, sisuda, fechada como granito, ilumina-se e um longo sorriso rasgado atravessa-a de orelha a orelha. Aquele homem de ombros largos, quase septuagenário, a quem o tempo, na sua voracidade, tornou o cabelo branco como neve, ganha, de repente,  uma fisionomia de menino traquina. A sua testa habitualmente lavrada por rugas de preocupação torna-se lisa como um campo arado. É um gosto ouvi-lo falar das suas longas viagens no país, a acompanhar a velhinha Académica, do Néné, do Rui Rodrigues e do seu bem-aventurado Benfica, com o Coluna e o Eusébio, o “pantera negra”. Então, quando lembra, nas suas imensas viagens ao estrangeiro, aquela dedicatória do Maradona, não consegue parar de falar. As frases saem em catadupa, como água jorrando duma fonte natural. 
Sempre, como fotógrafo dos jornais; Diário de Coimbra, do Despertar, da Gazeta de Coimbra, da Bola e do Record. Relembra, com emoção, o tempo em que foi o fotógrafo oficial da Fábrica Central de Cervejas, do Sindicato dos Bancários, da Associação Nacional dos Municípios Portugueses. Com a voz embargada, plena de orgulho, fala do seu falecido amigo, Mendes Silva, ex-Presidente da Câmara Municipal de Coimbra. Com saudade, fala das mais de duas dezenas de casas comerciais que existiam na cidade e se dedicavam ao retrato. Hoje, contando com ele entre os decanos do flash, poucos mais restam do que meia dúzia de casas de fotografia. Falo, como muitos leitores já adivinharam, de um ícone da fotografia de Coimbra, Victor Ramos, estabelecido na Rua da Louça, ao lado da Loja do Cidadão.
Aparentemente, quem leu até aqui, até parece que este meu texto pretende apenas apresentar a biografia, aliás merecida, deste artista -de mais um ofício em acelerado desaparecimento- que, pela sua eloquente simplicidade, passa intencional- mente despercebido. Mas não. Não foi isso que me levou a falar de Victor Ramos. Da sua dedicação e do seu trabalho não precisa ele que o refira, as suas obras perpetuá-lo-ão além tempo e fará com que “da lei da morte se liberte”. O que me levou a escrever foi o facto de, em cerca de uma dezena de anos, o seu estabelecimento ter sido assaltado catorze vezes. A última, que o mandou praticamente ao tapete, em luta contra um inimigo quase invisível, desprovido das mais elementares regras deontológicas, cujo objecto é a destruição do adversário, foi pouco antes do Natal. Para além da destruição da montra, foi “aliviado” entre mais de 1500.00 Euros, entre, dinheiro, tabacos, máquinas e rolos fotográficos. 
Hoje, diariamente, antes de encerrar, leva duas horas a arrumar o material no armazém. Além disso, para quem quiser ver, deixa a sua máquina registadora, de gaveta aberta, na montra, como, a provar, que “o gesto é tudo”, mostrando aos “amigos do alheio” que ali mora um veterano na resistência física e anímica e, além de mais, dinheiro…só no Tota.
Quando lhe pergunto, depois de ter vivido o apogeu comercial da Baixa, como vê, hoje, a sua decadência e insegurança? O seu rosto torna-se novamente granítico e as gelhas enrugadas regressam novamente à sua fronte. Então, com desânimo, exclama: ”olhe…quando é assaltada a esquadra da PSP e a Junta de Freguesia de… quem se poderá sentir seguro?”- Lembro que a junta de S. Bartolomeu, assim como o segundo piso do edifício da 2ª Esquadra da PSP, esta, que funciona no rés-do-chão, ambas em plena Baixa da cidade, no fim de semana de 31 de Março, foram assaltados e vandalizados. Quando o interrogo acerca do que pensa da videovigilância, em discussão para ser implementada, diz que concorda, desde que tal “demarche” se estenda a todas as ruas da baixinha e desde que esta medida preventiva não seja só para “tapar o sol com a peneira”, o Centro Histórico não é simplesmente e apenas as Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz. Até porque, replica: “ a Baixa não tem polícia à noite. Eu e o meu vizinho, para evitar os roubos, já passámos duas noites em claro, aqui a jogar às cartas, e não vimos passar nenhum polícia”.
E quanto ao futuro? Interrogo. “Se tivesse menos dez anos fugia daqui...isto vai piorar e ninguém se importa connosco. Veja, hoje (Sexta-Feira-Santa), o comércio está todo aberto (não se vê quase ninguém), os transportes são escassos, próprios de um dia qualquer de feriado ou dia-Santo. A Loja do Cidadão hoje está encerrada; 2ªFeira, que o comércio está encerrado, aquela, está aberta... alguém entende isto? Eu não!”
Ainda lhe digo mais, continua: “Muitas vezes, na obsessão da poupança e puro autismo administrativo, transforma-se parte de uma artéria da cidade em "deserto de ninguém", como é o caso da Rua da Louça. A Loja do Cidadão, para economizar em serviços de segurança, está apenas com uma única porta aberta para o Largo das Olarias, quando, originariamente, foi concebida para permitir a entrada quer por este, quer pela Rua da Louça. Não acha que é imoral, ostensivo e provocador, este voltar de costas, sabendo que existem vários estabelecimentos que, do seu incerto futuro, dependem directamente da passagem de pessoas? Sabe o que vai acontecer se não arrepiarem caminho? O mesmo que está a acontecer na Rua Adelino Veiga…e com outras ruas e vielas, vamos fechar todos”, conclui.



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