segunda-feira, 14 de junho de 2021

UMA TRAGICOMÉDIA POLÍTICA CHAMADA VACARIÇA



1.º ACTO


INTRODUÇÃO


O aviso, em jeito de ameaça, foi lançado no povoado plasmado num edital emanado das autoridades locais ligadas à saúde pública: “a partir do dia 14 de Junho, e durante os meses de Julho e de Agosto, o polo da Vacariça irá estar encerrado. Os utentes com consultas agendadas para este período deverão deslocar-se à sede (Pampilhosa) no horário marcado.

Rapidamente um dos habitantes, neto de dois avós com dificuldades de locomoção, chamou a si o encargo de tocar o sino a rebate, como quem diz, apelar nas redes sociais, para reunir o máximo de cidadãos e se manifestarem contra o atropelo administrativo.

O sítio do encontro dos descontentes contra a indignidade e o desrespeito não poderia estar mais de acordo com o momento: o Largo do Pelourinho.

Pelo traçado histórico, facilmente se queimariam em lume brando, no local, as cabeças administrativas da hierarquia. Se fosse pouco, os políticos (co)responsáveis iriam a seguir.


2.º ACTO

O GALARÓ E A RAPOSA


Com um solar centenário em fundo, onde tem funcionado a extensão de consultas médicas e o Pelourinho no centro da praça, cerca de seis dezenas de unidades de povo, à hora marcada, assentaram arraiais. A ideia geral era sinalizar o terreno para que, com a sua presença, se fizesse ver aos opressores que ali havia união do tal povo, enquanto entidade abstracta, e que mesmo silenciosamente o grito poderia ser muito mais elevado do que o de Ipiranga.

Seria também mais que certo que o organizador, alegadamente com alguma experiência em manifestações, não desconhecia, de todo, que, pelo facto do Reino já se encontrar em período de pré-eleições para Regedor do Concelho, esta iniciativa tinha tudo para correr de feição. Previsivelmente, aquele cenário não era mais do que um palco onde se avizinhava um duelo surdo entre opositores no combate autárquico que se avizinha. Por um lado, esperava-se o Regedor em exercício, também recandidato, conhecido por velha raposa, pela sua sagacidade, e tornado inimigo número um por todos os contendores ao pleito eleitoral quando o Outono desabrochar. Por outro, a chamada oposição, em bloco, distribuída no meio dos manifestantes esperavam o evoluir da situação para agir em conformidade e em defesa da legalidade ultrajada. Ou seja, quer o Regedor, quer os novos aspirantes à cadeira do poder, apenas esperavam uma oportunidade para brilhar diante do galaró (povo).


3.º ACTO

A VITÓRIA É DE QUEM ATACAR PRIMEIRO


De repente, aparentemente sem encenação, formou-se uma roda em torno de um personagem com máscara, como mandam as regras sanitárias. É baixo, fala em surdina, o que cria alguma dificuldade para se fazer ouvir, veste com pouca preocupação em andar na moda. Quem será?

É o Regedor. Como se estivesse num duelo, de súbito puxa da pistola de argumentos e, com a sua voz calma e meiguinha, soletra: “Nem que seja preciso a Câmara pagar a médicos e enfermeiros esta extensão de saúde não encerra”. Dita esta frase profética, foi como se o Regedor tivesse crescido mais meio-metro acima das pessoas comuns.

À sua volta, por parte da assistência popular, pressentiu-se um clamor de acalmia e serenidade nos ânimos.

A oposição, como se fosse apanhada de surpresa e ficasse sem acção, petrificou perante o atrevimento da velha raposa.


4.º ACTO

ENFERMEIRA AO PODER


Ainda o Regedor mal coçava a barriga de contentamento pela vitória obtida na surpresa, eis que do molho de gentes salta para a ribalta uma senhora enfermeira. Como se pretendesse pôr em dúvida o poder do Regedor e lhe pedisse meças, de voz fina, bem colocada e melhor oratória, declarou a boa-nova: estava mandatada pelo coordenador da Unidade de Saúde para anunciar que a extensão da Vacariça, contrariamente ao que fora anunciado, já não encerrava. Com muito esforço da sua pessoa, na qualidade de enfermeira, tudo faria para levar a sua missão em frente. E o povo, sempre tão agradecido a bons funcionários diligentes e agarrados à causa pública, ovacionou fortemente. Tão forte que o Regedor, como se sentisse ameaçado por esta actriz, tremeu com medo de perder protagonismo.

Por entre os candidatos da oposição, pelo olhar de estupefacção, adivinhava-se facilmente estarem a pensar que bom seria ter a enfermeira nas suas fileiras.


5.º ACTO

ONDE HOUVER UM COMUNISTA NÃO HÁ UNANIMISMO


Quando tudo parecia que a vitória ia ficar dividida entre o Regedor e a enfermeira e o pano prestes a cair no palco, eis que de entre a assistência salta um comunista a reivindicar uma parte dos louros. Com um discurso a fazer lembrar a quinta da Atalaia, no Seixal, monopolizou toda a assistência. Num piscar de olhos, ali todos eram agora comunistas.


6.º ACTO

CAI O PANO. ATÉ AMANHÃ, CAMARADAS


Em vez de rolarem cabeças na base do Pelourinho, viram-se muitos a esticar o pescoço para aparecerem nas fotografias.

Viu-se o Regedor, em passo rápido, tão sozinho como entrou, sozinho saiu do palco por momentos mediático.

E, numa esperança que não morre, cai o pano sobre a política partidária.


FIM


 

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