(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
No
meu tempo de criança – já lá vão tantas décadas quantos dedos
de uma mão -, o pai era o esteio, o sustentáculo, a trave mestra da
família. Na velha casa onde o sol penetrava no interior pelas frestas das telhas
e
sem pudor beijava tudo quanto mexia, incluindo o pulguedo e os
animais que, nos currais por baixo, se avistavam pelos buracos do
soalho, a sua voz firme
era
o princípio e o fim do verbo. Ali, abrangendo os quatro patas,
todos, sem desobedecer, ouviam e calavam -e
ai de quem se atrevesse a contestar,
quem
o fizesse era severamente punido no momento sem direito a alegações
ou contraditório. Era
uma autocracia em que
o
poder do líder era
absoluto e ilimitado. Resultado
de um tempo austero e de repressão, no entanto visto destes nossos
dias, esta estranha forma relacional não era transversal a
toda a
sociedade. Como
em tudo, e
ainda bem, cada
caso era um acaso.
Apesar
disso, mesmo com o afecto
paternal pregado por
cavilhas que magoavam a carne, entre pais e filhos estabeleciam-se
elos de ligação encadeados para a existência dos
progenitores e primogénitos.
Dito de outro modo, sendo um amor envergonhado, imposto de cima para baixo, mais
autoritário do que sentimental, ficava cimentado e gravado para
memória futura.
Sem
livro de instruções, sem
exigir uma perfeição que nunca existiu nos humanos, qualquer
um de nós, filhos, sabia que, quando a adolescência desaparecesse e
os
pêlos no rosto
se tornassem
abundantes,
depois de contrair matrimónio, inevitavelmente, durasse
pouco ou muito, acabaria
a absolver
os “excessos”
educacionais do pai. Era
uma espécie de primado
em indulto
geracional: perdoar ao pai para ser perdoado pelos filhos.
Esqueceria
as bofetadas espalmadas num momento de cólera, as cordas dobradas e
as cinturadas arremetidas injustamente num
corpo frágil, cuja pretensão final era o endurecimento precoce e
a contenção de húmidas
lágrimas escorridas em cara de anjo. Em consequência, os
prantos,
sentidos
em sofrimento de exasperação, saíam
secos
como
os couratos e os enchidos enrugados
e
fumados no
fumeiro balanceando na
chaminé. Era
uma provação imposta aos jovens como se cada um, para merecer fazer
parte dos adultos, tivesse que provar estar à altura das
dificuldades que se adivinhavam para
o
futuro. A consequência deste trato, por vezes algo cruel,
repetidamente,
era passarmos toda a vivência
a querer provar ao nosso criador sermos trabalhadores, fiáveis
e dignos da prossecução do seu sobrenome.
Não
havendo a comemoração mundial do Dia do Pai, a celebração, em
respeito com beijinho nas costas da mão e a frase “sua bênção,
meu pai”, era feita diariamente.
Para
alguns de nós, que fomos filhos nesse tempo e hoje somos avós, o
nosso pai, pela crueza da época, pela manifesta falta de carinho,
sem um beijo ou um sorriso fácil, e dureza do trato, não foi o
nosso herói. A sua única preocupação, sem dúvida, era fintar a
fome que entrava sem pedir licença nos casebres mal-aconchegados e
sem comodidades mínimas.
Hoje,
nos dias que nos atravessam, que para fazer lembrar que o pai existe
se recorre a um dia especial, mesmo assim, com a data exclusiva virada
para a mercantilização, a maioria dos filhos, que tudo tiveram e
tanto foram acarinhados, sem um tabefe para recordação, não se
lembra que o pai existe. Onde quer que se encontre o espírito dos
nossos progenitores, adivinho, estarão a rir de troça e a
perguntar-se se, pela penosa lição recebida agora, esta é mesmo a
futuração que tanto almejávamos?
Parafraseando
um amigo: “Felizes dos pais que têm bons filhos!”
TEXTOS RELACIONADOS
"Carta de um pai para filho (no dia do Pai)"
"Carta de um pai para filho"
"Carta a meu filho (1)"
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"A partida do meu sangue"
"A sociedade do medo"
"Editorial: qualquer parvo chuta para canto"
"O solitário"
"Os novos conteiros vigários"
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1 comentário:
Sr. Luis Fernandes, fiquei surpreendido com o seu post. Com todo o respeito, levar porrada e ser humilhado em menino, não nos faz melhor cidadãos ou mais trabalhadores. Pelo contrário. Uma pessoa pode é tornar-se melhor cidadão, apesar disso, não por causa disso. Deixe-me brincar e dizer que se fosse esse o caso, seriamos agora uma nação mais rica e civilizada do que a Suiça ;)… Quanto ao "elo de ligação".. que elo de ligação? O que acontece é que por vezes a memória nos prega partidas. O que havia mais era medo.
Eu sei que há alguns mitos nisto, mas os pais agora, em média, são muito melhores pais do que antigamente, mais carinhosos, mais atentos e mais respeitosos com os filhos e o contrário também é verdade.
Quanto aos filhos lembrarem-se dos pais… olhe, eu já tenho quase 60 anos, sou de Coimbra, e ainda me lembro de quando os filhos extremosos do antigamente abandonavam os pais no tenebroso asilo de velhos da Rua da Sofia e noutros pelo país, quando não se viam a pedir pelas ruas. Havia violência física e psicológica de parte a parte.
O que eu concluo disto tudo é que a memória muitas vezes nos prega partidas e queremos construí-la à medida dos nossos desejos.
António
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