Faleceu
Eduardo Ventura das Neves.
Durante largas décadas a sua memorável lamúria, “tenham
dó e caridade de auxiliar o ceguinho, com uma esmola, para quem não
vê a luz do dia, senhor”,
ecoou e foi a nossa companhia
diária na esquina entre o largo da Freiria e frente para as Ruas das
Padeiras e Eduardo Coelho.
O
Eduardo, com 65 anos, solteiro, vivia em Casalinhos, Soure, em casa dos pais.
Homem cioso do que considerava ser seu por direito adquirido, algumas
vezes assisti a escaramuças de bengala em riste contra o invasor que
pretendia ocupar o seu lugar ganho por força do tempo. Escrevi muitos textos sobre esta figura peculiar da zona histórica. Assim como tantos outros que nos vão deixando.
Para
quem vive na Baixa, o Ventura era (mais uma) figura carismática que,
pelo seu apelo à moeda, fazia parte da nossa existência diária.
Hoje, que partiu para longe, é quase certo que deixa uma sombra de
tristeza no coração. Pessoas como o Ventura das Neves, quando estão
na sua função, de boa saúde, pelos seus repetidos comportamentos
até se tornam aborrecidos, porém, quando desaparecem abruptamente e
sem avisar, durante muito tempo no local que se mantiveram, nos meses
subsequentes, parecemos ouvir a sua voz provinda dos confins da terra. São
assim as figuras típicas da cidade. Chamo-lhes “Rostos Nossos (Des)conhecidos”.
À
família
enlutada, em nome da Baixa, e mais em particular das Ruas Eduardo
Coelho, Padeiras, do Almoxarife e do Largo da Freiria, os nossos
sentidos pêsames. Até sempre Eduardo.
UM
POEMA ESCRITO PARA O EDUARDO, EM 2008
“Uma moeda, por amor de Deus, senhor”,
repete mil vezes o ceguinho em ladainha,
encostado, sem ver, na esquina da ruinha,
em prece carecente, exaustiva de amor,
aos poucos, sente, vai caindo a moedinha;
Passa a velhinha desafortunada,
sem sorte, cujo marido perdeu,
olha para o cego, que não vê nada,
retira uma moeda, o rosto emudeceu,
pensa em Deus, numa prece sagrada;
Calmamente, passa o comerciante falido e sonhador,
outrora, corredor de fundo, dono da rua,
“que Deus lhe pague em dobro, senhor”,
ouve o cego, dá meia-volta e recua,
deposita uma moeda, pensa Nele com fulgor;
Dona Maria, dona de casa, cheia de solidão,
ouve o cego: “ajude, por amor de Deus!”,
abre a carteira, tira uma nota com a mão,
pensa para si: "que o Senhor limpe os pecados meus,
me dê forças e paciência para aturar o meu João";
Passa um casal de namorados, ele é generoso,
no gesto, mostra à sua cara-metade a sua bondade,
ela, sem dizer, pensa, quanto ele é tolo e vaidoso,
não se impressiona com aquela facilidade,
assim, só lhe mostra o quanto é manhoso;
Pára um político, cumprimenta o cego, faz-se notado,
olha em volta, quer ser visto, pensa no que seria,
se desse uma nota de dez, de vinte, ao pobre coitado,
talvez passasse um jornalista e tirasse fotografia,
no dia seguinte, em “cacha”, “O amigo do necessitado”;
No meio de cegos, o menos invisual é o que não pode ver,
todos precisam da sua cegueira para os fantasmas expiar,
o gesto hipócrita de dar não passa de ambição de receber,
na fé, em promessa a um Deus generoso capaz de multiplicar,
o cego, que não vê, lendo a alma desta gente, parece tudo ver.
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