“Muitos
destes professores, sumidades de peito cheio,
que
caminhando em bicos de pés pelos corredores
se
julgavam acima dos mortais, deveriam ser julgados por
ter
matado o sonho de milhares de portugueses,
sobretudo,
nos últimos quarenta e cinco anos”
Embora
aparentemente sem lhe atribuirmos um grande significado, está
acontecer uma verdadeira revolução na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra.
Segundo
o Diário de Coimbra desta última quarta-feira, “Alunos de
Direito afirmam que a justiça foi reposta”. Prosseguindo na
citação do jornal, “O Núcleo de Estudantes de Direito da
Associação Académica de Coimbra (NED/AAC) considerou ontem que “a
justiça foi reposta” depois de o reitor ter emitido um despacho
que suspendeu o processo avaliativo da disciplina de Economia
Política II. (…) Os estudantes acusaram o docente
responsável pela disciplina, Victor Calvete, de usar critérios de
avaliação que violam, “de forma clara”, o Regulamento do Curso
de Licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Em causa estava a decisão de Calvete de não cotar
para vinte valores a prova escrita. O método de correcção
utilizado na prova escrita (…) dando a cotação máxima
possível à prova escrita de 19 valores.”
Antes
de prosseguir, recorro a uma ressalva, faço parte do imenso lote de
portugueses que, pela pobreza associada, começou a trabalhar logo
no final do ensino básico (hoje 1.º ciclo) e não puderam estudar
em tempo útil. Ao longo da vida, o adquirir do conhecimento e da
formação, para além do empírico, foram feitos em horário pós-laboral e no gosto pela
leitura. Em 1999, então com 42 anos, com muito custo, entrei na
Faculdade de Direito através do “ad hoc”, método de
acesso criado para essa finalidade. Transpor a Porta Férrea foi o
maior sonho da minha existência. Sempre imaginei um dia ser advogado. Nessa
altura, se me propusessem a troca por cem mil euros eu teria
convictamente optado pelo curso de direito. Por ler bastante e deter
um conhecimento razoável do que me rodeava, estava convencido que
entre o primeiro e o quinto ano – foi antes do Processo de Bolonha
– eram favas contadas. Não deixando de me rir agora pela
arrogância e estupidez, cheguei a apostar com o Celestino e o
Faustino - dois colegas de curso nas mesmas condições e amigos –
que faria a licenciatura em cinco anos, sem chumbar. Fiz este acordo
no restaurante “Zé Manel dos Ossos”, na Baixa da cidade.
Começaram as aulas
e com elas uma alegria esfuziante e indescritível. Sendo os três
quarentões, com os filhos já crescidos, parecíamos adolescentes,
novatos e com a mesma idade, ao lado dos caloiros mais novos. E se
nós, juntos, estudávamos com afinco! Lembro-me, o Faustino tinha
uma memória prodigiosa. Bastava ler uma passagem e ficava tudo. Eu
não, decorar não era comigo. Tinha de ler várias vezes e
compreender. Nessa primeira turma de 1999 havia muitos alunos como
nós e até mais velhos.
Vieram as primeiras
frequências e, com notas medíocres, os primeiros desaires. Vi
raparigas e rapazes a receberem zero de avaliação e caírem para o lado, a
chorarem desalmadamente. Alguns alunos apanharam esgotamentos e
mudaram de curso pela incapacidade de compreender o que almejavam os
docentes.
Do alto da sua
importância metafísica, os
regentes das várias disciplinas,
com pompa e circunstância,
como se estivessem a dizer uma
grande coisa para além do disparate imbecil,
apregoavam que a frequência era para 20 valores mas o máximo de
nota que dariam seria 14.
Outro exemplo mesquinho, no
caso em Introdução ao Direito, era afirmar com gáudio perante
mais de uma
centenas de alunos, que no
primeiro ano havia cinquenta por cento de chumbos, mas já no último
ano a percentagem de sucesso era superior a cem.
Outro desrespeito
notório no interesse dos discípulos, que concorria para a
iliteracia e maus resultados académicos, no tempo em que por lá
andei, nunca foi feita uma correcção a qualquer frequência. Sobre
vários artigos do Regulamento da Faculdade de Direito, que não
sendo cumpridos, era feita tábua rasa. Exemplos? Tantos, mas o que
mais recordo com mágoa, porque mesmo chamados à razão os lentes
gozavam do alto da sua razão de conveniência, era a não permissão
de assistência às orais -quando no Regulamento da Faculdade eram
prescritas imperativamente como públicas.
Relembro um colega,
também estudante trabalhador, hoje já advogado, ter ido 14 vezes
fazer o mesmo exame. Fiquei a saber de outros que, por a sua
indumentária não agradar ao regente, foram destratados em plena
oral examinatória.
Relembro ainda, num
exame no Auditório, antes de começar a prova escrita e alerta sobre copianço, durante cerca
de 15 minutos assistir a um clima de ameaças por parte da professora
responsável e ter proporcionado um ambiente tenso parecido com uma
tourada. Participei por escrito a ocorrência ao Conselho Pedagógico
e nunca me foi dada resposta.
Depressa apreendi
que, onde se deveriam formar cidadãos para intervir nas injustiças
do mundo, ali formatavam-se pessoas arregimentadas para não se
distinguirem do comum.
O Faustino,
dizendo-me muitas vezes que ali os mais velhos como nós eram
discriminados intencionalmente, foi o primeiro a claudicar. Tentei
demovê-lo. Eu achava que, perante o meu amor ao direito, jamais
desistiria. Erro meu! Passados poucos anos com algumas cadeiras
concluídas, saí pela porta pequena, como sói dizer-se. Trouxe
comigo um anátema de cavalgadura que custou muito a passar. Achava
mesmo que era burro e que o meu tempo tinha passado. Só quem por lá
percorreu o chão de pedra milenar consegue entender a dor que fica
no coração. Apesar de tudo, o Celestino, talvez por ser funcionário
público, com mais tempo para estudar, e mais persistente, concluiu a
licenciatura.
Muitos destes
professores, sumidades de peito cheio, que caminhando em bicos de pés
pelos corredores se julgavam acima dos mortais, deveriam ser julgados
por terem matado o sonho de milhares de portugueses, sobretudo, nos
últimos quarenta e cinco anos.
Esta semana, no
Jornal Público, veio publicado o resultado de um estudo da Fundação
Belmiro Azevedo sobre as desigualdades no ensino superior. É um
primeiro passo para chegar aos elevados chumbos e interrupções nos
cursos universitários.
Parabéns ao Núcleo de Estudantes de Direito. Parabéns ao novo Reitor, Amílcar Falcão.
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