


Em anterior apontamento falava da Rua da Louça ou Loiça, conforme referia no Diário de Coimbra (DC), em 30 de Maio de 1985, Mário Nunes, investigador, reconhecido defensor do património Coimbrão, e actual vereador da cultura do executivo da Câmara municipal de Coimbra.
Continuando então a citar o DC, “Permanecem as velhas enquanto as novas não se afirmam, havendo um período de transição, em que coexistem ambas, até que a moderna absorve a antiga, quando acontece o desaparecimento das gerações mais próximas. Por isso, na época do Tinge-Rodilhas, a partir de 1487, começa a escrever-se e a falar-se num novo topónimo, Rua do Caneiro. Este nome insere-se nos direitos reais, incluídos, geralmente nos forais e que no reinado de D. Manuel I, aquando da reformulação dos primitivos forais, vieram confirmar-se ou criar-se novos direitos para a Coroa. O Caneiro era uma reserva piscatória no Rio Mondego e noutros rios (atente-se na povoação, próxima de Coimbra, a Foz do Caneiro), que eram demarcadas por paliçadas ou estacas e cujo rendimento do peixe, ali pescado, revertia para a Coroa. Como a Rua Tinge-Rodilhas atingia o rio e terminava no Caneiro, veio a ser absorvida, toponimicamente, por este e passou a denominar-se de Rua do Caneiro, confirmada em documentos até 1562. Nos finais do século XVI, 1577, e século XVII, 1603 e na finta de 1613, a rua volta a alterar o topónimo, desta vez, para Rua da Cruz, provindo o nome da presença da Igreja e Mosteiro de Santa Cruz num dos extremos, embora venha a prevalecer também a Rua Tinge-Rodilhas. Este nome é popular e aquele é oficial.
O facto descrito é indesmentível já que após o ano de 1613, regressa o nome de Tinge-Rodilhas e dilui-se o de Rua da Cruz. Tinge-Rodilhas continua até 1845, aquando da feitura da planta geral desse ano. Concluindo, verificamos que a rua teve os seguintes topónimos: Tintureiros, Tinge-Rodilhas (duas épocas), Caneiro, Cruz, Loiça, Bordallo Pinheiro e, finalmente, Rua da Louça.
A rua recebeu “alteamentos” sucessivos durante vários séculos com o intuito de evitar as cheias do Mondego; alindou-se com o calcetamento de paralelepípedos, encheu-se de casas altas e bem equilibradas arquitectonicamente, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, como podemos comprovar pelas fachadas das mesmas (aventais) e ornamentou-se com lindas grades de ferro no século presente (XX) e no anterior (XIX). Em 1958 foi ali instalada uma fábrica de gelados que veio afirmar a propensão da Baixa para a instalação da pequena indústria e do artesanato.
VER, HOJE, A RUA DA LOUÇA (30-5-1985)
Percorrer a artéria, hoje, desviando o olhar do chão e encaminhá-lo para os andares superiores dos prédios, é contactar uma realidade que passa despercebida à maioria da população. Logo à entrada, indo da Praça 8 de Maio, deparamos com a Casa Ganilho, um século a vender Ferragens, ornada de ferro fundido nas barideiras das portas e um varandim guarnecido de ferro forjado no último andar, culminando com trapeira sobre o telhado. No lado oposto, um prédio diferente, por ter um uma longa parede sem janelas, rematada na extrema por quatro pequenas aberturas com vidros (mini-janelas). A seguir, outra casa, airosa, sobranceira à rua, de azulejos e, mais além, outra com dois beirados sobrepostos. O número 15, com janela de avental, cobertas de cal e outras cortadas (que lástima) e os prédios nº 30 e 54, autênticas réguas compridas providas de pequenas aberturas, janelas, coroando com trapeira no telhado e esta com pináculo de barro. Mais além, as janelas de avental e guilhotina, sucedem-se. As grades de ferro multiplicam-se. Os prédios nº 35 e 58, em degradação, apesar de bonitos e característicos da época, século XVII, revelam nas lojas de fruta enterradas no chão, o “alteamento” sofrido pelo pavimento ao longo dos tempos. A roupa estendida a enxugar, as caras sujas de muitas casas e as ervas nos beirais, são sinais de um passado glorioso que teima, apesar de todos os crimes de lesa-património, permanecer e ficar entre nós.
Mais adiante, o prédio 86/94 mostra todas as janelas com avental e guilhotina, infelizmente despercebidos pela cal que as forra. O nº 100, em degradação, bem como o seguinte, ostenta um pequeno painel de azulejos do século XVIII, alusivo às Almas do Purgatório, com figuras simbolizando, a nosso ver, um Papa, um Bispo e uma pessoa do mundo, a arder nas chamas da purificação. Uma loja de artesanato vende toda a variedade de objectos, desde bilhas de barro a cestos de verga e a “bigigangas” para todos os gostos. Frutas variadas despertam a curiosidade e o apetite ao mais distraído dos passeantes. Um grande portão, largo, dá sequência para a Rua da Moeda, através de um pátio interior.
Pertença da Câmara, segundo nos elucidaram, serviu, em tempos relativamente próximos, de cocheira e de recolhimento. Os feirantes, os mendigos e os “sem eira nem beira”, encontravam nesta mansão, um tecto para os abrigar e umas cavalariças para recolher os burros, as éguas, os cavalos e os carros e carroças.
Mais portas enterradas, nº 55 e 57, mais guilhotinas, mais varandas rendilhadas, mais ervas de anos nos beirados, mais caleiras rotas e a cair, mais chaminés de pedra e cal a desafiar os tempos, podemos ver e admirar. Na faixa lateral das Olarias, prédios baixos em degradação, alternam com outros reconstruídos e a imitar uma profusão de estilos e épocas.
A Rua da Louça, uma rua muito antiga, mancheia de atentados ao património, em especial as lojas, absorve quase todo o género de negócios: pronto-a-vestir, calçado, relojoarias, rádios, artesanato, louça, ferragens, cervejarias, restaurantes, tabernas, fotografia, pássaros multicolores, frutas, lãs, profissões liberais e escritórios. Os reclames de bandeira ou adossados, serpenteiam a rua e mostram autêntico arco-íris pelas cores que apresentam. Transeuntes de todas as camadas sociais, param, olham, conversam, gritam, riem e compram. Os preços e os encontrões obrigam a jogar à defesa e a comprar depois de auscultar os vários preçários expostos. Um mundo de pessoas que utiliza a artéria, embora o troço Praça 8 de Maio ao Largo do Poço seja o mais (de longe) concorrido.”
(Mário Nunes, actual vereador da cultura da Câmara Municipal de Coimbra, in Diário de Coimbra de 30 de Maio de 1985)
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