Por
volta do meio-dia, quando o Sol estava a pique, foi hoje a enterrar,
no cemitério de Santa Clara, António Marques Ferreira, de 86 anos,
o “Senhor António,
da Sapataria Reis”,
como era conhecido em toda a baixa comercial no tempo quando pessoa e estabelecimento eram irmãos siameses na identidade.
Como
marçano, tendo como colega Manuel Magalhães -também já falecido-,
começou ainda novo a vender sapatos na desaparecida Sapataria Reis,
com frente para a Rua Eduardo Coelho -antiga dos sapateiros- e Largo da Freiria. Hoje deu lugar a um bonito estabelecimento de calçado
para criança: A Loja da Laura. Anos mais tarde, talvez
em fins das décadas de 1970 e princípio de 1980, por cedência de
quotas da antiga proprietária da Sapataria Reis, viria a constituir
uma sociedade com o seu colega Magalhães. E por aqui se manteve até
por volta de 2008, altura em que cedeu os seus direitos de
propriedade a uma filha de Magalhães.
Apesar
de ter deixado o comércio com cerca de 75 anos, o Senhor António
parecia vender saúde. Tal como Magalhães, o seu sócio no negócio,
tinha por aqui muitos amigos, que diariamente faziam da velha
sapataria desaparecida -encerrou em Maio de 2011- uma espécie de
porto de abrigo para grandes conversas e jogo da moeda. Aqui se
juntavam em grupo ao longo da tarde. Era muito interessante sentir o
quanto este antigo espaço comercial contribuiu para a revivificação
desta zona.
Para
a família enlutada nesta hora de sofrimento, em nome da Baixa
comercial, se posso escrever assim, os nossos sentidos pêsames. Até
sempre, Senhor António.
UMA
OUTRA BAIXA DESAPARECIDA
Embora
talvez poucos pensem nisto com a mesma profundidade como escrevo,
porque estou cá, as pequenas lojas, sobretudo as mais antigas, que
constituem o universo do comércio tradicional estão para a cidade
como as flores estão para os jardins. Se os negócios vão
desaparecendo e substituídos com outros ramos, resultado de várias
crises, económica e social, as áreas habitáveis vão secando como
desertos e, conduzindo ao isolacionismo e ao individualismo,
transformam-se em zonas de pouco humanismo. É nestas alturas que o
pior que as pessoas transportam dentro de si, como a maldade, a
inveja, o falso testemunho e a difamação, vem ao de cimo. É nesta
instabilidade social que, acentuadamente nos mais frágeis e
sensíveis, a ansiedade dispara, as depressões marcam o dia e a
falta de sono branqueia a noite.
Não
sei se consigo explicar por palavras escritas o quanto foi importante
a antiga Sapataria Reis, nas pessoas dos seus sócios, ao longo das
décadas para uma vivência desaparecida da Baixa. É certo que todos
os dias era um bulício popular, um forró coroado com tinto bem
regado, e muitos não gostavam, sobretudo pelo barulho proferido
pelos contraentes do jogo da moeda: “duas”, “quatro”, “seis”,
“oito”, que ecoava ao longo da velha rua, mas era um encanto para os meus ouvidos.
Retirando
a ladainha de um ou outro cego -que nesse tempo se digladiavam por um lugar na esquina-, agora praticamente o silêncio cobriu toda
a envolvente, Tenho muita saudade desse tempo. Certamente pelo
pitoresco, pela invulgaridade, gostava muito de os ouvir. Pressentia
naquela manifestação popular uma espécie de prova de vida. Pela
sua falta, impressionou-me tanto que em 2013 até compus uma canção
a que chamei “Hino à cidade “perdida”:
HINO À
CIDADE PERDIDA
“Olhem,
tenham dó”,
gritava
a cigana,
“tenho
dez filhos e “mi home, entrevadinho”,
está
na cama, coitadinho, e não pode trabalhar”;
Davam
uma moeda,
tinham
compaixão,
na
outra esquina um ceguinho repetia a lengalenga
trauteada
em oração;
No
largo em frente
jogavam
à moeda,
e
entre um copo e uma sardinha na tasca da Mariazinha
se
depuravam as mágoas;
ESTA
CIDADE JÁ NÃO EXISTE
SÓ NA
MEMÓRIA É QUE PERSISTE
O
tempo passou
e
tudo mudou,
e
a minha rua que era luz, agora é triste, tem uma cruz
p’ra
lembrar que pereceu;
Já
nem um pregão,
um
gato a miar,
só
o silêncio modorrão invadiu seu coração
e
de quem teima em ficar;
ESTA
CIDADE NÃO TEM VIVER.
JÁ NÃO
TEM VIDA, ESTÁ A MORRER.
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