(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Tentando
trazer à colação a história recente do comércio na Baixa, com a
maior honestidade intelectual e até onde a memória me conduzir, vou
tentar retratar os últimos cerca de vinte anos, mais precisamente a
partir de 1995. Porquê continuar a malhar no desgraçadinho, como
quem diz escrever sobre o comércio? Porquê começar em 1995? Porquê
o título? À primeira interrogação respondo que continuo a
escrever sobre a actividade mercantil na Baixa por que, a meu ver, a
história do comércio no coração da cidade, quer no nascimento,
quer no crescimento, quer no pico máximo, quer na declinação (que
vivemos hoje), não está feita. Embora eventualmente possa fazer
remissões para o passado, estabeleço uma data de começo em 1995
por ter sido um ano de transição, o início de um novo ciclo
político de abertura à esquerda, após dez anos de governos PSD, a
viragem do milénio, o marco da chegada de uma nova sociedade mais
informada e informatizada, a data em que, de certo modo, nasceu a
última fornada de consumidores -que estão agora, neste ano da graça
de 2017, com 22 anos. E é precisamente nestes dois estratos sociais,
velhos comerciantes e novos consumidores, que, ao mesmo tempo que
descrevo, vou tentando arranjar explicação para a queda do comércio
tradicional, visto pelos olhos de um operador que começou a
trabalhar na Baixa em 1973.
Porquê
o título “os
varridos do comércio”?
Furtei a presente denominação a um antigo comerciante, e meu amigo, que chama
assim aos colegas que foram “empurrados”
para uma insolvência anunciada ou ainda estão no activo por
necessidade e sabem antecipadamente que o seu destino está traçado
a curto ou a médio prazo.
Foi
precisamente por isto que, apesar de já ter produzido dezenas e
dezenas de textos sobre este mesmo assunto, senti necessidade de
escrever novamente sobre o declínio da classe.
Os
comerciantes de rua serão vítimas de um sistema político
interesseiro, onde só os grandes grupos económicos contam e os
pequenos são moléculas invisíveis carregadas de obrigações?
Serão
despojos de uma cultura assente no costume, em que a mudança e a
novidade são os trilhos onde corre a máquina do progresso, que
nunca foi tão rápida como hoje?
Serão
peças velhas, sem utilidade, resquícios de um tempo que passou de
moda?
Serão
simplesmente os guardiões de um museu -que, como actores de uma peça
trágica, dando vida às urbes pagam para trabalhar- em que se
transformaram os velhos centros das cidades para os turistas e novos
consumidores?
Como
é evidente não vou responder a qualquer destas perguntas. O que
pretendo é, partindo do passado para o presente, com seriedade fazer
reflectir e, cada um por si, chegar a uma conclusão.
I
Estamos
em 02 de Outubro de 1995. Ontem realizaram-se as eleições
legislativas. António Guterres, ganhando o pleito eleitoral com
maioria relativa, depois de uma década de governos PSD,
centro-direita, liderados por Cavaco Silva, abre a porta de entrada
do país ao Partido Socialista (PS), centro-esquerda.
A
Câmara Municipal de Coimbra é liderada por Manuel Machado, em
representação do PS.
O
movimento comercial na Baixa segue o seu curso praticamente igual aos
últimos vinte anos. A cidade, para quem vem do exterior, é uma
espécie de Meca comercial. Aqui tudo se compra, aqui tudo se
vende. As ruas estreitas e largas continuam apinhadas de pessoas. Os
transeuntes, constituídos por nativos e visitantes de toda a região
centro que aqui se deslocam para fazer compras, fazem fila indiana
para percorrer escassos metros de calçada. Por esse facto, por um
desmesurado movimento de pessoas a atropelarem-se nas vias, e também
por começar a ser moda retirar os automóveis dos centros
históricos, cinco anos antes, em 1990, Machado manda retirar o
trânsito automóvel e transforma as Ruas Ferreira Borges e Visconde
da Luz em vias pedonais. Os jornais locais anunciam que no Verão,
sobre orientação de Fernando Távora, que fora também o
responsável pelo projecto de pedonalização das ruas largas, vão
iniciar-se as obras de rebaixamento do piso da Praça 8 de Maio.
II
A
zona da Alta, sobretudo as Escadas de Quebra Costas, para além da
hotelaria, está essencialmente povoada com estabelecimentos
dedicados ao mobiliário. Embora houvesse também dois alfaiates, uma
livraria, uma loja de electro-domésticos, uma oficina de rádios,
uma casa de canetas, um velhustro e um alfarrabista.
Abaixo
do Arco de Almedina, a Baixa prossegue o seu curso aparentemente
normal. No entanto, pressente-se no ar alterações ao seu “status
quo”, ao seu
situacionismo, e alguma preocupação, sobretudo para os
profissionais do comércio. A abertura do Continente e da Makro no
Vale das Flores ocorrera dois anos antes, em 1993, e, embora recente,
a deslocalização de clientela estava em curso e já provocava mossa
no negócio. Nessa altura, aquando da abertura destas grandes
superfícies, chegou a realizar-se uma manifestação de protesto
liderada por César Branquinho, um comerciante com lojas na Rua das
Padeiras, próximo do PS e muito activo nas lides associativas e que
chegou a ser presidente da ACIC, Associação Comercial e Industrial
de Coimbra.
Como
se fosse pouco a concorrência que vinha em grande escala, por força
das políticas de Cavaco Silva no obedecer a directivas europeias
-Portugal aderiu à então CEE, Comunidade Económica Europeia, nove
anos antes, em 1986-, pelo abandono dos campos, o terciário passou a
ser um porto de abrigo de todos os encalhados. O resultado deste
encarte é que começaram a abrir negócios em tudo quanto era vila e
cidade periférica da grande urbe. Por isso mesmo, aos poucos,
Coimbra ia perdendo a atractividade comercial que sempre tivera ao
longo do século XX. Mas, salienta-se, apesar disso, a cidade
fervilhava de gente. Um ano antes, em 1994, pela adesão de Portugal
à Organização Mundial de Comércio, começaram a surgir as “lojas
de trezentos” como
cogumelos em manhã de nevoeiro. Na Rua das Padeiras, onde irrompeu o
primeiro espaço comercial onde se vendia tudo, desde guarda-chuvas a
ferramentas, havia longas filas de pessoas à espera para entrar.
III
O
comércio na Baixa está dividido por áreas classicistas. As ruas largas, a
Visconde da Luz e Ferreira Borges, constitui a fina flor que tem por
objecto servir a elite da cidade. Para além de deter os melhores
cafés e muitos consultórios médicos nos pisos superiores, aqui
estão situadas as grandes casas de moda e duas sapatarias de marca.
Nas
ruas estreitas e praças adjacentes está o comércio mais popular.
Neste ano encerrou um grande armazém de mercearia nas ruas
estreitas, os tendeiros que vendem tudo em porção de quilo temem a
sua extinção.
A
ocupar verticalmente todo o edifício, o ponto de venda está no
rés-do-chão. Está muito centralizado, isto é, um comerciante
chega a ter oito lojas a vender o mesmo artigo num espaço de cem
metros quadrados entre vielas que se cruzam. Outros, na mesma rua ou
praça, quase encostados uns aos outros, detêm dois, três e quatro
estabelecimentos, todos com o mesmo artigo para venda. Não é
surpresa saber que algumas destas empresas têm no seu quadro de
pessoal quarenta trabalhadores, alguns deles com mais de trinta anos
de casa. Mas as vendas estão a cair muito rapidamente e muitas
destas firmas não conseguem ganhar para pagar aos funcionários. Os
despedimentos, sobretudo nos servidores mais novos para não pagar
indemnizações, começam em catadupa. As grandes empresas, que deram
nome à Baixa comercial nas últimas décadas, entram em falência técnica e vão durar
poucos anos.
(ARTIGO
EM CONTINUAÇÃO)
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