Seriam
para aí umas 15h00 de hoje na torre sineira da Igreja de São Bartolomeu.
Apesar do dia estar a meio, o silêncio sepulcral na Rua Eduardo Coelho era
apenas quebrado pelo abrir de portas de uma ou outra loja mais
tradicional que ainda segue a cartilha universal dos velhos costumes,
ou pelo bocejar de um outro comerciante que, fazendo contas ao dia,
se sentia molengão e ensonado. Nos beirais, por cima e onde o olhar se
perde a caminho do céu e em direcção aos santos milagreiros, os pombos, uns
numa merecida sesta, outros a catar a pulga no penacho, outros ainda
a ensaiar uma descarga de dejectos para cima do primeiro papalvo que
se colocasse a jeito, tomavam banhos secos.
Sem
nada premeditado para abalar a pacatez de uma ruela simples e modesta
como modestos são os lugares singelos, foi então que a
meio da antiga rua dos sapateiros, com frente para a artéria das
mulheres que outrora cozinhavam pão e ali vendiam como tremoços,
alguém ouviu dois homens, um invisual e outro quase cego de braço
dado, depois de atestar e ligarem os motores de arranque, a dirigirem-se a pé, em correria, para o Largo
do Poço. Diz quem viu que a velocidade naquele curto troço de
calçada praticada pelos dois, cego e quase cego, estaria muito
próxima dos 100 à hora, isto, claro está, numa zona de trânsito
condicionado e onde a calma marca a hora e a quilometragem não deve
exceder os 20. Para complicar a coisa, diz quem viu, ao que
parece os dois condutores de si mesmo -ou melhor, o menos cego que pilotava o mais cego- presumidamente levavam um grão na asa,
como quem diz, excesso de álcool no sangue -sublinho o
“presumidamente” porque não se realizaram exames
toxicológicos. Numa aritmética simples, está de ver que juntando
as duas premissas, excesso de velocidade e mais álcool, o resultado
da adição é igual a acidente. E foi mesmo o que aconteceu.
Ouvindo-se o ribombar de vidros, o plim pim pim de objectos a
beijarem as pedras, o som oco de dois corpos embarrilados a caírem no asfalto sem
protecção, e toda a gente veio espreitar para ver o que estava a
acontecer. Teria um qualquer santo caído lá de cima e vindo aos
trambolhões por aí abaixo? Ter-se-á questionado em solilóquio.
Os sonâmbulos acordaram de repente, os pombos, alvoraçados pelo susto, levantaram voo e procuraram novo abrigo mais pacífico, o dono da loja, perante os estragos, alegadamente arranhou na cabeça e teria proclamado: “o que é que eu faço com isto?”
Os sonâmbulos acordaram de repente, os pombos, alvoraçados pelo susto, levantaram voo e procuraram novo abrigo mais pacífico, o dono da loja, perante os estragos, alegadamente arranhou na cabeça e teria proclamado: “o que é que eu faço com isto?”
Como
conheço bem o lesado e afirmo ser uma pessoa de bem, de boa paz com
o mundo e de muito respeito alheio, como não falei sobre a avaliação
dos danos nem na vontade a seguir, adivinho que está tudo perdoado e
nada vai ser alterado. Ou seja, a Rua Eduardo Coelho vai continuar na
modorra habitual, os dois cegos vão continuar desiguais, um mais
cego do que o outro, a tasca da zona vai seguir o mesmo ritmo na
venda de tintolas de fazer estalar a língua, os mercadores
vão continuar às portas de olho meio-aberto, meio-fechado, e o dia,
inevitavelmente, caminhará para o seu fim. Valha-nos Santa Engrácia,
protectora dos acasos que quebram as rotinas da cidade.
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