sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

BARRÔ: BARULHOS AO VIRAR DA ESQUINA NUMA SEXTA-FEIRA

 



Como há muito não se via, nesta Sexta-feira, desde o raiar da aurora, Barrô esteve todo em estranho alvoroço, como há muito já se não via.

Logo de manhã, vieram vários funcionários da Junta de Freguesia com uma camioneta de caixa-aberta e em cima uma máquina de rasto. Com os seus coletes reflectores, como um pequeno pelotão em busca de um renegado invasor, o grupo dividiu-se pelas artérias da aldeia. Uns levavam máquinas de cortar erva a tiracolo, outros vassouras, enxadas e pás. Com voz de comando anteriormente comunicada, ali o inimigo a abater eram as ervas rastejantes e algumas elevadas e presas nos muros de pedra das bermas dos caminhos.

Durante a tarde, veio um camião-cisterna dos Bombeiros da Mealhada com homens, e, estes, mandando deslocar os pachorrentos automóveis do seu letárgico e pacífico estacionamento de fim-de-semana, com uma longa agulheta de alta-pressão para pôr o alcatrão a brilhar, impondo as ordens com voz grossa e rasgada de comando, puseram o pessoal barrosense em sentido.

Perante tanto ensurdecedor barulho, as cabras, em berros lancinantes, protestaram com veemência, as ovelhas, olhando com desdém o que se passava à volta mugiam a bom mugir, as galinhas, alvoraçadas, fazendo desta sexta-feira um dia negro, não puseram ovos como habitualmente.

Quem viesse de fora e visse a inusitada faxina, mais que certo, pensaria que viria um ministro em visita à povoação, mesmo de governo em gestão, e promessas de partidos candidatos em banho-maria.

Mas o motivo de tanto empenho não era nada disso.

Um insólito e profundo matraquear vindo da capela, mesmo lá de dentro, como se viesse das profundezas da terra, fazia parar os poucos transeuntes que trocavam as voltas a mais um dia de calendário gregoriano. Um ou outro, surpreendido pelo ribombar de trovoada, mais fiel e seguidor dos destinos da vontade divina, pensando ser um milagre de santo, durante largos minutos, ajoelhava no frio negro da calçada e cruzava o braço em sinal da cruz. Outros, mais desligados do santificado, assim, como hei-de dizer, católicos a tempo parcial, que só recorrem ao auxílio de São Sebastião quando estão em extrema aflição, passavam ao largo, pouco se importando se o Padroeiro contra a fome, peste e contra a guerra, e protector da povoação, por acaso estaria em padecimento. Sim, porque Santo, como humano que já foi, também sente e sofre na pele o desprezo a que é votado.

Santo, como é mais que óbvio, alimenta-se essencial e especificamente do espiritual. Mas se aqui, neste lugar habitado, poucas pessoas rezam com verdadeiro fervor no silêncio epicural, como pode aguentar-se o apóstolo do Criador? Imagine-se que a imagem para sobreviver e manter-se na capela firme e hirto, comia como todos nós. Quem se dignava dar-lhe uma côdea?

Ninguém se admire se, a curto prazo e já que estamos a entrar em campanha eleitoral, houver manifestações públicas da Esquerda à Direita, acusando-se uns e outros de discriminação, abuso e exploração para com as imagens veneradas em todas as igrejas e capelinhas.

Em boa verdade, esta defesa dos direitos sociais e económicos de todos os trabalhadores para a fé até deveria ser feita pela classe episcopal, desde padres a bispos, passando pelos cardeais, deveriam deixar cair a sotaina que esconde os abusos.

Até podem rir-se e chamarem-me bacoco, pouco me importa. Mas uma coisa é certa, São Sebastião nasceu em França. Ainda jovem mudou-se para Milão, Itália. Tornou-se soldado e preferido pelo imperador Diocleciano, que o nomeou comandante da Guarda Pretoriana. Não vou adiantar muito mais, até por que o resto da sua história de vida é por demais conhecida, mas sabe-se que veio para Portugal por ter sido maltratado no país transalpino. Em suma, é mais um refugiado, um imigrante (com “i”, como agora se diz) entre nós em busca de uma dignidade perdida.


FUI FALAR COM O SANTO


Ainda não disse isto aqui: sou unha com carne com o meu amigo São Sebastião – Sebastião, simplesmente como eu o trato, e ele a mim chama-me “Toino”.

A nossa amizade – que não tem nada a ver com esta do Facebook – começou há cerca de quatro anos, quando vim viver definitivamente para cá.

O que mais o prendeu a mim foi a minha sinceridade. Logo nas primeiras conversas coloquei logo os pontos nos “is”. Ele não me tentava convencer que fazia milagres – até porque eu não ia acreditar – e eu também não o induzia para ele crer nas minhas verborreias. Até por que nem era preciso dizer.

Como moro a a escassos metros da capela – e também por que a zoada me incomodava -, dei por mim a sobrepor o patim e a bater com estrépito na porta de madeira da velha e popular ermida. Mal entrei, fui logo envolvido pelo o intenso perfume a depressão. Nem sei bem explicar, era assim uma mistura entre folhas de eucalipto, mirra e urtigas refogadas.

Encontrei o Sebastião de rastos, coitadinho. Palavra de honra, jamais o vira assim, com tamanho ar de enjoo. Tinha descido do plinto (a base onde assenta os pés) e, sentado na posição de Rodin (o Pensador), com a cabeça sobre as pernas, parecia uma galinha choca. Mas o que mais me impressionou foi ter entre as mãos a corda que anteriormente o amarrava ao troco de árvore. Temi mesmo o pior.

Dando-lhe um apertado abraço, e misturado com lamurias de grande amigo, grande amigo, conta-me o que te provoca esse negrume solitário nesse bondoso coração.

E a imagem de santo blasfemou, blasfemou, chorou, chorou, falou, falou, e nunca mais se calou:

Em Setembro passado, alegadamente, foram retirados pela Junta de Freguesia de Luso para serem restaurados os dois bancos que havia aqui junto à entrada, onde os velhinhos, como tu, se sentavam ao cair da tarde, quando o Sol se escondia no horizonte. E até hoje não foram devolvidos. Saberás lá tu, “Toino”, a tristeza que me atormenta? Bem sei que sou um lamechas, “Toino”, mas que queres?

E agora fazem-me mais esta… Isto é mesmo para me derrubar. Não aguento tanta falta de consideração. Já não há mesmo respeito pelos velhinhos. Porra!

Então a festa em minha honra, que seria comemorada no próximo Domingo, 21 de Janeiro, só merece uma missa? Uma missa? É só mesmo isto que eu mereço?

Nem ao menos uma procissãozinha? Estou farto...”


TEXTO RELACCIONADO

"Barrô: Um comentário recebido sobre..."


Sem comentários: