sábado, 6 de janeiro de 2024

A OBSTRUÇÃO

 




Mas eu não me deixei amolecer. Avisei logo: ou ajudas

no mal que me atormenta ou não vais ver um cêntimo para ajudar

a pagar a sagrada procissão que vai acontecer proximamente,

já que no que toca a festa profana, bailarico e outros que tais,

não vais ter sorte nenhuma”


Esta semana, tudo começou devagar, devagarinho com um pequeno arroto, assim como se a canalização expelisse ares de cólica abdominal em vómito anunciado. Não sei se estou a ser claro mas, em boa verdade os líquidos não corriam livremente como deveria ser.

No primeiro dia, não dei muito importância, afinal nunca tivera problemas com o encanamento. Se é certo que nunca tivera muito cuidado com as gorduras, que provocam a obstrução e o colesterol e, no limite, podem provocar o colapso, também é certo que tinha um certo uso mas não era muito velha. Isto é, visto do exterior, tudo indicava estar ali para as curvas, durante mais umas largas décadas.

O problema é que o engasgamento continuava e tudo indicava ter vindo para me complicar a vida. Se no início era um simples expelir de gazes encaracolados em bolas de sabão, com a continuação o bloqueio foi total e o cheiro pestilento a podre invadiu tudo em redor. A minha mulher, sem saber o que fazer, preocupadíssima como sói de ver, só maldizia o azar que nos calhou em sorte. Às tantas, sabe-se lá, foi bruxedo. Andam para aí tantas bruxas desencaminhadas, prontas a despejar o veneno em pessoas boas, como nós.

Comecei por vários produtos especializados. O primeiro a entornar em dose dupla, para além de provocar uma sensação de borbulhar, não deu em nada. O segundo, aparentemente melhor do que o antecedente, dando-se imediatamente por vencido, nem se dignou promover uma rebelião interior. O terceiro, sugerido como o melhor à venda no mercado, e acompanhado de banhos de água quente, rendeu-se logo e deu-se como incapaz no primeiro assalto.

Os dias iam decorrendo e eu sem ter melhoras. O cheiro a pútrido era cada vez mais notado.

Várias vezes dei por mim a pensar que os meus vizinhos chamariam a ASAE por pensar que transformei a minha casa numa destilaria clandestina.

Deitava-me a pensar em possíveis soluções milagrosas, acordava a meio da noite a transpirar de ansiedade, e, para além de umas profundas olheiras negras, levantava-me sem alento. Comecei a dar por certo que isto era mesmo mau-olhado, ou, se calhar, o pagamento antecipado pelos muitos pecados que pratiquei e descrença no sagrado.

Ao terceiro dia a situação estava simplesmente caótica e sem controlo. À minha falta de paciência para tal calamidade e empestamento, soçobrava uma apatia cada vez mais instalada que me impedia de dormir. A minha mulher, perante o meu “deixa-andar”, encostando-me o dedo indicador em riste no nariz, lançou um ultimato: ou chamava um clínico para debelar a doença ou apelava ao transcendente, como quem diz, recorrer à hagiografia católica e lançar mão à bem-aventurança de um Santo.

Mas as coisas não eram tão lineares assim. Se, por um lado, corria o risco de chamar um “médico” para debelar o imbróglio e, para além de não resolver a anomalia, me levava o coiro e o cabelo, por outro, como é que ia rogar a um Santo que me ajudasse nesta aflição se, para além de não acreditar no seu poder metafísico, há muito tempo, mas muito tempo mesmo, não falava com nenhum, nem mesmo naqueles momentos mais introspectivos, de catarse? E mais: a que santo vou pedir auxílio? Aos da casa, como diz o povo, não valia pena, porque não fazem milagres.

Até que na última noite, passada em branco, inteirinha a contar carneiros, tomei uma decisão drástica e de último recurso: apesar do descrédito sentido, iria pôr em acção o poder obscuro e enigmático dos santos da casa.

Ontem, em abstração, tive uma longa conversa com São Sebastião – para quem não sabe, é o padroeiro da nossa aldeia, e cuja festa anual é no próximo dia 20. Abri o diálogo – aliás monólogo – logo a atacar. Não fosse ele pensar que, por ter sido mártir e reconhecido milagreiro e eu ser um simples humano, me metia medo. Isso é que era bom! E ainda lhe disse que não acreditava nele. Com aqueles olhos profundos e fixados em mim, a santidade parecia olhar-me com ternura, compreensão e contemporaneidade. Mas eu não me deixei amolecer. Avisei logo: ou me ajudas no mal que atormenta ou, não vais ver um cêntimo para ajudar a pagar a sagrada procissão que vai acontecer proximamente, já que no que toca a festa profana, bailarico e outros que tais, não vais ter sorte nenhuma. Levas uma homilia e um cortejo em torno da povoação, e dá-te por grande sortudo. E dei por encerrado o bate-papo.

Entretanto, lembrei-me que, num canto da minha casa, tinha uma imagem de Santo Onofre, o protector dos comerciantes, em terra cota com cerca de um metro de altura. Durante mais de uma década, aparentemente, esteve a olhar pelo meu negócio numa loja de velharias que tive em Coimbra. Ou seja, sendo franco, esta imagem fazia companhia a outras que se destinavam a venda e compunham o acervo do velho estabelecimento comercial. Como fechei o negócio no final de 2022, dei guarida a algumas peças não vendidas, uma delas foi a imagem de Santo Onofre.

Num olhos-nos-olhos, coloquei-lhe a questão friamente: aqui, a tua função de zelador comercial terminou. Para além disso, como te apercebeste, ninguém se interessou em levar-te para casa. Ora então, temos que decidir o teu futuro. Ou vais para uma ermida obscura e perdida no monte, ou vais para o desemprego, ou, no limite, não tendo lar de acolhimento, vais aumentar o índice de sem-abrigo por esse Portugal fora – e que o Marcelo, o Presidente da República, prometeu erradicar da pobreza.

Coitadinho, fixou os olhos em mim com tal tristeza que até se me deu um lancinar no lado esquerdo. Palavra de honra, arrependi-me imediatamente do que tinha proferido. Podem não acreditar mas, apesar dos meus lapsos e relapsos ao longo da minha existência, eu até tenho bom coração. Então, moderando o tom agressivo, sugeri: está bem, não te vou abandonar como se fosses um preso de longa data que, depois de libertado, não tem onde cair morto. Vais comigo para a minha residência. Mas, atenção, vais ter de trabalhar como qualquer comum mortal, que lá em casa não há pão para malandros. Vais ter de te esforçar e mostrares o que vales.

Mais uma vez, com voz grave, como naqueles momentos de grande tensão, interpelei o Onofre e ordenei: meu amigo, durante o último ano em que permaneceste como hóspede neste locado, não me apercebi de qualquer graça tua transcendental. Então, meu caro, chegou a hora de mostrares o que vales. Considera ser uma oportunidade.

E, pela enésima vez, fui tentar desentupir o cano do lavatório da cozinha. Sentia-me esperançado e com muita fé. Algo no meu interior me dizia que ia mesmo conseguir. Não é para isso que a fé complementa a nossa limitação, incompletude, e nos empurra para a frente, mesmo sem ânimo?

Repetindo o processo já anteriormente tentado, novamente enfiei a longa bicha curvilínea, mas agora ligada a um berbequim. Como cobra saracoteando na terra árida, penetrou no longo buraco escuro. E pumba! Já está! Finalmente! E a água toldada pelo cansaço, como se deslizasse na planície por entre socalcos, correu alegremente.

Num canto da minha casa uma certa imagem que simboliza a crença no divino pareceu sorrir.


Sem comentários: