segunda-feira, 5 de abril de 2021

BARRÔ: A VISITA PASCAL

Exptuando esta época em tudo anómala de pandemia, devido ao caso de haver um único padre na paróquia de Luso, a visita pascal em Barrô foi sempre realizada na Segunda-feira a seguir ao Dia de Páscoa. Neste dia, por cá, ninguém trabalhava. Embora mais carregada de solenidade sacra, somando à festa das Alminhas, de São José e de São Sebastião, era mais um dia de festividade na povoação. Os residentes vestiam o engomado fato domingueiro - e único, que para além de estar guardado somente para sair em ocasiões especiais, durava toda a vida e serviria para mortalha na última viagem sem retorno. Enquanto criança nos anos seguintes a 1960, relembro com saudade o ambiente de festa que invadia toda a minha aldeia. As entradas das portas eram todas atapetadas com folhas verdes misturadas com, salvo erro, rosmaninho. A fragrância envolvida, em parafernália de odores, era de tal modo intensa que apagava completamente o cheiro a estrume, aroma que se apanhava facilmente num dia de semana de trabalho árduo no pequeno povoado. Logo de manhã, ao romper da aurora desta Segunda-feira pascal, a minha mãe começava os preparativos para a cerimónia. Depois de, nos dias anteriores, de joelhos, ter esfregado muito bem o chão da sala, de madeira, carcomida pelo tempo, com uma escova de piaçaba e sabão amarelo. A sala, a única divisão com tecto forrado e a maior da casa com melhor apresentação, que no Verão se ajustava para estender o milho para descamisar e a secar e no Inverno para escolher a azeitona, era onde, dos poucos no lar, existiam alguns móveis: um armário muito alto, com várias portas e todo fechado, muito antigo, do tempo dos meus avós, um louceiro simples com espelho e vidros nas portas cimeiras, adquirido a prestações com os denominados “cartões” – e que eu, amiúde, limpava com azeite para o pôr a brilhar -, uma mesa e quatro cadeiras. A minha mãe, depois de ter estendido uma toalha branca, colocava em cima da mesa um bolo doce, de Páscoa, cortado em fatias – que nos dias antecedentes cozera no forno a lenha existente num barracão junto à cozinha, mas do lado de fora -, uma garrafa de vidro com jeropiga, uma tacinha com um pacote de amêndoas às cores -que eu via sem poder tocar, e tentava adivinhar o sabor açucarado, enquanto durasse a exposição e não viesse a comitiva pascal. Logo que a porta fosse transposta pelo acompanhamento, os doces confeitados desapareciam num ápice no fundo de uma saca de pano transportada por um dos miúdos do grupo - e, no centro da bancada, uma laranja com uma moeda de cinquenta cêntimos a servir de coroa ao fruto, e que seria levada também – já que de notas para a côngrua não havia, portanto, não rezavam para a história. Sem poder faltar, havia também em exposição uma jarra com flores e um pequeno crucifixo, com a cruz em madeira e a imagem de Cristo em chumbo moldado – chamado de “bacalhau”, por ser muito achatado. A partir das nove horas, numa ansiedade crescente, todo o lugar parecia estar de sentinela à espera do ansiado toque do sino da capela – sinal de que Monsenhor Mira, acompanhado com um séquito de, creio, três adultos e duas crianças. Vestidos com opas vermelhas e brancas e onde vinha incorporada a esplendorosa e enorme cruz de prata cinzelada e trabalhada um século antes por grandes artífices prateiros. A seguir ao toque de anunciada começava imediatamente o bradar ritmado da pequena sineta transportada por um dos miúdos. Com o aproximar do “Ding-dong”, “ding-dong”, saído do pequeno sininho, as famílias das casas em redor eram tomadas de uma ânsia apenas explicável pela rara visita do presbítero. Os vizinhos, pondo de lado as querelas e as arrelias que antes provocaram descontrolo e azedume, tomavam posição na casa em que o Senhor ia ser beijado, e mentalmente pediam perdão por minudências sem sentido. A visita de Cristo à casa de cada um constituía, sobretudo, uma mensagem de paz para com o dono da casa e deste para com os seus confinantes. Quando a pequena procissão entrava dentro de uma casa, com o sacristão, à frente, a carregar a cruz, era secundado pelo prelado que, ao mesmo tempo que pegava no hissope, utensílio usado para aspersão, antes mergulhado na caldeirinha, a borrifar os presentes, pedia a bênção a Deus para aquele lar, humilde ou abastado. E durante, pelo menos, um ano Barrô ficava em paz com a sua consciência colectiva.

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