sábado, 13 de fevereiro de 2021

BARRÔ: O TURISTA INDESEJADO

 



Aparentando cara de poucos amigos, aportou à nossa aldeia há cerca de um mês. Vestindo completamente de preto com as roupas que a natureza lhe deu, pose simples mas estudada de gentledog, rosto alongado, encimado por dois olhos brilhantes, não parece um nómada igual a alguns outros que percorrem as estradas e os caminhos de Barrô. De poucas falas, montou acampamento no adro da capela. Se avista gente da minha terra com sacos de lixo em direcção ao contentor, é certo e sabido que vai seguir o seu olhar. Aproximando-se lentamente, enfiando a melhor máscara de humilde pedinte, vai ficar à espera que lhe calhe qualquer coisinha em sorte. Se não vem, o que é um problema para o seu estômago, também não se manifesta. O seu olhar cândido e angélico vai manter-se sem qualquer alteração. Se o passante lhe fizer uma festa no dorso, vai deliciar-se com a atenção dispensada. Nesta altura da crónica já deveria estar a chamá-lo pelo nome, mas o nosso visitante de quatro patas, o melhor amigo do homem, não tem identificação.

Com um ar pacífico e meiguinho, o cão que descrevo, se vivêssemos numa sociedade ideal, nem serviria de nota. O mais certo seria estar a fazer companhia a uma qualquer família, numa qualquer casa da freguesia de Luso. Mas se alguma vez, enquanto comunidade, estivemos próximos de atingir a perfeição, os tempos que decorrem, em luta desigual entre iguais, estão muito longe de o ser. E a primeira manifestação que soçobra é o abandono de animais. E contra isto, por mais leis e decretos-lei promulgados em defesa, não há lei que valha aos chamados sencientes.

E poderia terminar esta “estória” por aqui. Mas há mais: o nosso amigo que enalteço, por força das circunstâncias, já que um cão vadio não é de ferro e precisa de se alimentar, deu em ladrão salteador. É certo que, como se esperava de um felino aristocrata caído em desgraça, nem é muito esquisito. Ora pode ir uma galinha do galinheiro mais à mão, ora vão uns ovos caseiros, assim como pode ir o pão, deixado pelo padeiro na entrada da madrugada pendurado nas portas principais.

Quem não está para condescendências e outros perdões humanitários são os lesados, que, com razão, se vêem privados dos seus bens. Vai daí, no princípio deste Fevereiro, alegadamente, comunicaram à Câmara Municipal da Mealhada e à Associação Quatro Patas e Focinhos para recolher o pobre animal, que, no fundo, bem no fundo, até gera pena colectiva pelo seu abandono por algum mastronço sem classificação. Isto, se por ventura tiver sido abandonado. Porque também pode andar perdido.

Alegadamente, no segundo dia deste Fevereiro deslocou-se à nossa aldeia um grupo de três pessoas ligadas à autarquia e à associação de animais para adopção. Depois de um exame em jeito de diagnóstico rápido foi dito, alegadamente, que, por um lado, o vagabundo não era possuidor de “chip”, por outro, também não haveria lugar na associação com protocolo com a edilidade para recolher animais perdidos.

E os dias sempre iguais vão passando neste tempo de pandemia.

Por um lado, se o cão falasse, o mais certo seria perguntar: que mal fiz eu para ser obrigado a roubar para matar a fome? Por outro, se fosse possível descrever a “vox populi”, a voz do povo, com certeza que também interrogaria: se as autoridades nada fazem, seremos nós que temos de tomar medidas?


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