sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A COMPRA DO SALÃO BRAZIL PELA AUTARQUIA, OU COMO CRIAR UM ELEFANTE BRANCO








Na segunda ressalva, juro que não tenho por intenção colocar
em causa o valor cultural nem do salão, como espaço monumental
de memória, nem do esforço da direcção do Jazz ao Centro para
revitalizar o Centro Histórico. Nesta avaliação faço escusa.
Tento focar-me apenas no montante do investimento público.”


Os jornais locais de ontem noticiavam que a Câmara Municipal de Coimbra quer comprar o edifício do Salão Brazil, no Largo do Poço, na Baixa de Coimbra. Citando o Diário de Coimbra, “para o qual já existe uma proposta de aquisição, por parte de investidores estrangeiros, ao que foi possível apurar de nacionalidade chinesa, no valor de um milhão de euros. A decisão de adquirir o imóvel, que foi colocado à venda pelos respectivos proprietários, é “assegurar a continuidade da dinamização de actividades socioculturais já existentes naquele edifício, nomeadamente da Jazz ao Centro Clube, o que eventualmente poderia ser colocado em causa com uma transacção do imóvel para investidores privados”, confirma a a autarquia em nota enviada à imprensa. A proposta de aquisição do imóvel, que se encontra integrado na Área de Reabilitação Urbana (ARU) e em zona Especial de Protecção do Património Mundial Classificado pela UNESCO da Universidade de Coimbra, Alta e Sofia. “A situação coloca-se depois de ter dado, já este mês de Novembro, um anúncio no site “Casa Pronta” (uma ferramenta disponibililazada pelos serviços do Ministério da Justiça que permite realizar de forma imediata todas as formalidades necessárias à compra e venda de prédios urbanos, mistos ou rústicos) (…).
(…) Carina Gomes, vereadora da Cultura, citada no documento, destaca “a relevância cultural do trabalho promovido pelo Jazzz ao Centro Clube”, considerando que “o edifício, a sua localização e as funções culturais que ali têm lugar constituem uma mais valia estratégica para o importante processo que a autarquia vem desenvolvendo, em termos culturais e socioeconómicos, no âmbito da candidatura de Coimbra a Capital Europeia da Cultura 2027.
Começo com duas ressalvas. A primeira, hesitei muito em escrever sobre este assunto. Afinal, na qualidade de micro-comerciante da Baixa, cujo passado nesta vida foi a compra e venda, estou em fim de carreira e, saindo da cidade, estando quase a despedir-me da actividade mercantil, por que raio vou lançar a confusão em muitas mentes decisoras ou usufrutuárias que, perante o anúncio, já aprovaram sem reserva e, por só vislumbrarem a virtude angelical, sem conhecimento profundo do que está em cima da mesa, dão saltos de contentes. Na minha qualidade de cidadão anónimo mais ou menos informado, achei que, mesmo contrariando a onda, por uma questão de honestidade intelectual, sobretudo para comigo, deveria plasmar o que sei e dar a minha opinião. Esta minha crónica – aliás longa e que só lerão os pouquíssimos interessados no tema - vai ter algum impacto nos órgãos decisores? Claro que não. A decisão já está mais que tomada. Para uns, os que a apresentam na mesa executiva, é uma forma de, fazendo de conta que a medida é essencial, mostrar trabalho, para outros, os que deveriam ser o travão para impedir o desperdício e a arbitrariedade, por que têm medo de serem acusados de pôr o pau na roda, alinham na aprovação só para ganharem votos. Então, perguntará o leitor, nesse caso, se adivinha o que vai acontecer, por que o faz?
Na segunda ressalva, juro que não tenho por intenção colocar em causa o valor cultural nem do salão, como espaço monumental de memória, nem do esforço da direcção do Jazz ao Centro para revitalizar o Centro Histórico. Nesta avaliação faço escusa. Tento focar-me apenas no montante do investimento público.
Como é normal, os relatos jornalísticos são apresentados a frio, sem contraditório e desprovidos de qualquer informação prévia de suporte que leve o cidadão a avaliar o negócio. Trata-se de um investimento, isto é, trata-se de uma aplicação de capital com expectativa de retorno futuro? Ou, pelo contrário, estamos perante uma aplicação morta, onde o benefício a médio ou a longo prazo é difícil de vislumbrar?
É preciso não esquecer que, a consumar-se, é de dinheiros públicos que falamos, dos meus, dos seus e de outros concidadãos como nós. Os gestores políticos, embora com plenos poderes de representatividade, são (devem ser) simplesmente os executores da vontade popular e, no desempenho da missão, devem agir como um chefe de família avisado, ponderado e com visão estratégica de futuro. Sem pretender grandes juízos de valor, mas estando certo ser impossível fingir que não tenho opinião negativa, vou então mostrar o passado, o presente e o futuro (em especulação) do Salão Brazil.


UM POUCO DE HISTÓRIA


Recordar o Salão Brazil, na memória dos mais velhos, é tocar a saudade de uma efervescente Baixa cujo movimento de pessoas não voltará jamais. Transportar essa época para os nossos dias é como pretender voltar aos comboios a vapor.
Na sua época áurea, e até meados da década de oitenta, do século passado, o Salão Brazil e a Baixa, como irmãos siameses, caminhavam lado a lado. Escrever sobre este antigo salão de bilhares é pedir ao tempo que nos dê tempo para voltarmos atrás e nos fazer outra vez meninos. Falar no Salão Brazil é reviver memórias do Centro Histórico, é rebobinar um filme mudo onde as pessoas nas suas ruas e vielas parecem formigas em carreiro de sequeiro. (Clique aqui em cima e leia a história completa em crónica por mim escrita para o semanário O Despertar, em 2012)
Por volta de 1994 morreu velhinho o Juvenal, o timoneiro do velho salão, e com ele apagou-se a espiritualidade deste histórico espaço de entretenimento. Durante pouco tempo ainda funcionou com uma senhora como funcionária, mas acabou encerrado durante alguns anos.


OS NOVOS INQUILINOS DO SALÃO


Como curiosidade, creio que em 1998, cheguei a ir à Figueira da Foz falar com o proprietário para me arrendar o espaço para fazer leilões de antiguidades. Como a renda pedida era, a meu ver, exagerada não aceitei.
Pouco tempo depois o nobel salão de bilhares foi arrendado ao falecido Fernando, “do café Samambaia” - assim conhecido por ter trabalhado muito tempo no estabelecimento do Bairro Norton de Matos. Durante uns anos, com a ajuda da esposa na cozinha, os seus pitéus ganharam fama em toda a Baixa. Nessa altura, o Fernando, retirando a maioria, deixou apenas dois Snooker’s e na restante área tinha mesas.
Em 2004, uma sociedade, constituída pelo Manuel e o Telmo, toma conta do primeiro-andar do Largo do Poço e, acabando de vez com os bilhares, faz um restaurante de renome e de ambiente “Art Deco”.
Entretanto, estabeleceram um protocolo com o Jazz ao Centro (JACC), sob direcção de Pedro Rocha Santos, e incluíram animação musical.
Em 2012, O Telmo, o dono do restaurante, passou de vez e na totalidade o salão ao Jazz ao Centro, que se transferiu do Adro de Baixo.
A renda do estabelecimento era, por esta altura, creio, cerca de 1500 euros mensais. Para ultrapassar o problema dos custos de funcionamento, já com Barbosa de Melo em substituição de Carlos Encarnação à frente da edilidade e com Maria José Azevedo como vereadora da Cultura, o JACC passou a ser contemplado anualmente com 60 mil euros.
Veio 2013, com a Coligação Mais Coimbra, com o PSD/CDS-PP/MPT/PPM, a ser apeada pelos socialistas, com Carina Gomes como vereadora da Cultura, o PS manteve a atribuição o mesmo subsídio todos os anos subsequentes.
Em Fevereiro de 2015, encerrou a Daline, um loja de roupas, no rés-do-chão do edifício do Salão Brazil. Pagava uma renda de, creio, 2200 Euros. Pouco tempo depois a superfície foi tomada de arrendamento por um comerciante de ascendência chinesa por, creio, 2500 Euros.
Naturalmente, o JACC procurava alargar a sua actividade e chegou a gerar algum descontentamento na vizinhança.


BALANÇO DO QUE FICOU ESCRITO


O rendimento actual do edifício para um investidor particular é, portanto, de cerca de 4000 euros mensais. Ou seja, um dividendo convidativo que tenta um qualquer milionário com milhões disponíveis.
Porém, é preciso salientar que este provento não é o mesmo para a Câmara Municipal de Coimbra, já que, anualmente, injecta 60 mil euros na associação Cultural sem fins lucrativos.


PERGUNTAS SEM RESPOSTA


1-Tendo em conta o momento inflacionado para o edificado, será uma boa altura para a CMC exercer o direito de preferência num prédio que, tendo em conta o seu mau-estado de conservação, está hiper-valorizado?
Será que, para fazer uma ponderada avaliação que se exige tomando em atenção o elevado montante, foram consultadas várias imobiliárias em Coimbra?
2 - Sabendo-se que a compra está relaccionada no âmbito da candidatura de Coimbra a Capital Europeia da Cultura 2027, remetendo para os “elefantes brancos” do Euro 2004, fará sentido esta compra? Não deu para aprender nada com o descalabro financeiro que a experiência desencadeou no país?
3 – Qual o uso destinado ao edifício por parte do investidor chinês? Antecipadamente, não pediu a informação-prévia? Os cidadãos não deveriam saber?
4 – Imaginemos que se tratava de um futuro Centro Comercial. No interesse de revitalização da Baixa comercial, será melhor manter lá uma associação cultural cujos custos de funcionamento reverte por inteiro para os cofres públicos?
5 – E, pensemos, de aqui a quatro anos ganha a edilidade um partido, movimento, ou uma coligação que não concorda com a atribuição do subsídio ao JACC e “fecha a torneira”. O que vai acontecer? Justifica-se o investimento de um milhão de euros unicamente por causa de uma entidade que, praticamente, não tem receitas próprias?
6 – Ao adquirir um edifício alegando o trabalho profícuo de uma entidade sem fins lucrativos a autarquia não estará a promover um quid pro quo, tomar uma coisa por outra? Ou seja, valorizando um por excepção, não estará a gerar conflitos futuros, criando noutras congéneres a reivindicação do mesmo tratamento de igualdade?
Apenas como exemplo equitativo: a APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra, tal como o JACC, é praticamente suportada por dinheiros camarários. Acontece que a sua sede no edifício do Arnado, por simpatia, tanto quanto julgo saber, é, há muitos anos, cedida gratuitamente pela gerência do Centro Comercial. Tomando o precedente, levando em boa nota as alegações de que esta agremiação tem feito um bom trabalho, na linha do mesmo tratamento, a CMC não deverá comprar uma sala, ou outro qualquer sítio para esta agência? Se não o fizer, a meu ver, estará a usar de discriminação.

Sem comentários: