quarta-feira, 26 de abril de 2017

O GRITO DO INJUSTIÇADO MERCADOR





Na cidade denominada “Património da Humanidade”, a rua é dos turistas. Num caldinho de línguas e sotaques, entre espanhol, francês alemão e inglês, predominam estrangeiros vindos dos quatro cantos do planeta. Numa entrada de porta que, até há pouco, foi estabelecimento, a marcar a diferença entre o velho e o novo mundo, um homem, vestido a preceito com blazer branco e calçado com sapatilhas da mesma cor, num misto de personagens de Honoré de Balzac, na “Comédia Humana”, e Miguel Sousa Tavares, no livro “Equador”, parece desenquadrado do tempo e figura de ficção.
De cada lado do largo pórtico do prédio que não alberga ninguém, escritos num português portuguesinho, vários cartazes escritos a marcador tentam, sem conseguir, denunciar uma injustiça. Os transeuntes, nacionais ou estrangeiros, como boi a olhar para um palácio, miram aquele cenário como fazendo parte da miséria que grassa no país. Os primeiros, os nacionais, pelo costume que se tornou rotina e passou a fazer parte do dia-a-dia, já nem ligam e, pela indiferença, passam imunes a qualquer tipo de protesto. Os segundo, os estrangeiros, tiram fotografias para mais tarde recordar, quem sabe para mostrar aos seus que Portugal não passa de uma nação falhada onde a todo o custo, como postal ilustrado, se tenta vender a ideia de um franco desenvolvimento e um crescimento económico palpável. Para os políticos dos anteriores governos, do actual e dos que hão-de vir, há muito que o cidadão médio é apenas um número, coisa sem alma, em que o interesse maior por parte do Estado é o que lhe pode sugar. A administração, em confisco de tragédia, só está interessada em esbulhar. Só se safam os que estão na base da pirâmide, os pés-rapados, porque nada têm, ou os do vértice, porque os seus rendimentos são tão elevados que, mais ou menos cortes ou maior incidência de impostos, pouca diferença lhes faz. Quem está no meio, o pequeníssimo comerciante, o pequeno proprietário, o pequeno rural, dono de umas courelas, o aposentado com reformas de miséria, como boneco sempre em pé, é quem está a pagar a factura. Curiosamente, este imoral estado de degradação social, tão criticado por Raphael Bordallo Pinheiro, esteve na base da queda da Monarquia e Implantação da República em 1910. E depois da Implantação continuou. E foi gerado o bom cidadão. E as comendas para aliviar a dor.
O cidadão comum, que aos poucos foi perdendo tudo e até a capacidade de se indignar, há muito que perdeu a esperança de, através do voto nesta democracia de Estado lobo do homem, chegar a um sistema que lhe devolva algum bem-estar prometido, tantas vezes de quatro em quatro anos e perdido nas brumas da iniquidade, e uma felicidade que, devendo ser intrínseca e geral, só pode ser conquistada por compra de ansiolíticos.

MAS AFINAL O QUE É QUE SE PASSA?

Antes de entrar directamente na narrativa, dando voz ao injustiçado, vamos debruçar-nos sobre o que transmitem os cartazes.
Num dos lados da porta, pode ler-se: “Vende-se máquina registadora, como nova, só 100 euros”. E ainda outro: “Dá para relojoaria, perfumaria, ervanária, filatelia, numismática, artesanato, jornais, revistas e tabacaria. Informa José de Melo”.
No outro lado mais cartazes. Num deles, “Encerrado por falta de solidariedade da Segurança Social que ajuda os romenos e outros e ao Povo Português só sacrifica os beneficiários em presunção e não em dados reais, pois não devo um cêntimo à Segurança Social e tenho que pagar uma enorme multa, o mesmo é que nos sugar o sangue. Exijo justiça”.
Mais em baixo outra cartolina tenta espelhar a revolta: “Só lamento que os serviços de fiscalização da Segurança Social não tenham detectado fugas ao pagamento da mãe da fiscal. Colega à Seg. Social”.

QUEM SE (RE)VOLTA CONTRA A ARBITRARIEDADE?

O homem sobre quem escrevemos dá pelo nome de José de Mello, tem 75 anos de idade, e está aposentado há cerca de uma década. Segundo o próprio, descontou para a Segurança Social durante 42 anos e recebe de reforma, mensalmente, 495 euros.
O Mello é mais conhecido na Baixa da cidade que qualquer presidente da câmara municipal, actual ou anterior. Durante décadas, até mais ou menos 1990, trabalhou na desaparecida sapataria Capri, na Rua Eduardo Coelho. Pela extinção do posto de trabalho viria a adquirir o quiosque do Lobo, na Praça do Comércio. Ali se manteve até à sua reforma que ocorreu por volta de 2005. Tendo em conta o seu depoimento, nesta altura, como tinha um filho desempregado, o Guilherme, viria a entregar-lhe o negócio. Porque ainda se sentia com forças e não queria morrer aos poucos entre tascas e bancos de jardim, o Guilherme arrendou uma entrada de uma porta larga na Rua Ferreira Borges e, a vender coisitas, desde moedas, selos e pequenos recuerdos, colocou lá o pai para ele estar entretido. Este negócio estava em nome do Guilherme.
Porque o quiosque da Praça do Comércio é, há muitos anos, agência do Totoloto/Euromilhões, segundo o depoente, quando há transmissão de um negócio a Santa Casa da Misericórdia suspende o contrato de prestação de serviços com o novo adquirente. Porque a família precisa de rendimentos e não se governa com suspensões, para que isto não acontecesse, o quiosque da Praça do Comércio continuou em nome dos seus pais, o Mello e da mulher. Por consequência, o Guilherme passou a empregado dos seus progenitores e, nessa qualidade, sempre fez as suas contribuições para a Segurança Social. Ou seja, a Segurança Social não foi prejudicada.
Por outro lado, segundo as suas palavras, ao adquirir a entrada de porta da Rua Ferreira Borges para o pai se entreter, uma vez que o Mello estava reformado, também não prejudicou ninguém. Sempre cumpriu com as suas obrigações para o Fisco.
Aparentemente estava tudo bem...

SUBITAMENTE EM NOVEMBRO...

Em Novembro último, do ano passado, vários lojistas foram alvo de inspecção por parte da fiscalização da Segurança Social. Em alguns estabelecimentos foram detectadas irregularidades. Até aqui tudo normal, ou nem tanto. No que se levanta a questão de facto -não de direito por que pelos vistos a Lei das Pensões da Segurança Social prescreve a sanção-, o que é verdade é que alguns reformados foram apanhados a trabalharem em lojas, a dar uma ajuda a familiares. Um deles foi o José Mello.
É justo levantar um auto a um reformado de 75 anos que está ajudar o seu filho? Pelos vistos, legalmente é! A questão que se levanta é se um pai, idoso e reformado, que trabalhou desde criança e fez descontos para a Segurança Social durante 42 anos, pelo simples facto de dar uma mão a um seu familiar, tem obrigação de descontar ainda mais para o fazer. Sobretudo, falando nós de uma entrada de porta e auferindo uma baixa aposentação, se é legítimo exigir-lhe mais descontos? Pelo que se percebe é mesmo.
Talvez se entenda como é que o recentemente anunciado crescimento de cinco por cento das contribuições para a Segurança Social foi conseguido.

VAMOS DAR O MICROFONE AOS MELLOS

Em Novembro, último, entrou aqui uma fiscal da Segurança Social e interrogou quem era o titular do estabelecimento. Eu disse que era do meu filho e que eu, já reformado, estava aqui para o ajudar e, acima de tudo, evitar andar por aí a percorrer tascas e a beber copos. A fiscal disse que eu não podia estar aqui porque estava reformado. Perguntou-me se o meu filho me pagava. Eu respondi que não recebia nada dele. A funcionária não acreditou e presumiu que eu estava aqui assalariado. Disse mesmo que “todo o trabalho deve ser pago”.
Posteriormente, este mês recebi uma intimação para liquidar 800 euros de contribuições que, alegadamente e em presunção, deveria ter pago por um rendimento que não auferi. A coima ainda não foi calculada. Como nuvem negra anunciada, há-de vir para me apoquentar ainda mais.
O meu Guilherme já foi às Finanças dar baixa do estabelecimento. Já escrevi ao Ministro da Solidariedade Social. É muito injusto. Eu não tenho esse dinheiro. Se for mesmo obrigado a pagar, provavelmente, terei de cortar no comer e deixar de comprar alguns medicamentos. É uma falta de respeito por quem passou uma vida inteira a trabalhar.
Sabes o que me chateia mais? Foi a fiscal dizer-me na cara, a frio, que todo o trabalho deve ser pago. Posteriormente, vim a saber que esta senhora fiscal tem uma criança que deixa todos os dias ao cuidado de sua mãe. Diz-me tu: a progenitora desta senhora não está a tirar o lugar a uma ama? Será que a sua mãe está a fazer descontos? Será que não estamos a viver num mundo de loucos?

O QUE DIZ O GUILHERME?

Não pago nada ao meu pai. Nem poderia pagar. Era um pequeníssimo negócio que, retirando os custos, pouco dava, ou nada -a não ser para ele estar ali entretido. Não passei este quiosque da praça velha para meu nome por causa do facto da Santa Casa da Misericórdia, sempre que há transmissão, suspender o contrato do totoloto/Euromilhões e haver um novo processo de concessão. Fui aconselhado a manter assim. Para além disso, também pesou o facto de o meu pai ser doente e ter dificuldades na visão. Sempre fiz os descontos e nunca prejudiquei a Segurança Social.
Agora, com a coima a balouçar sobre as nossa cabeças, já encerrei o quiosque da entrada de porta na Rua Rua Ferreira Borges. Querem arrumar com a sobrevivência dos pobres? É isto que querem? Era melhor o meu pai andar por aí aos caídos? É tudo muito triste e demasiado aviltante para ser verdade. É isto, este tipo de perseguição aos pequeninos, que é o melhor para o país?”

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu não conheço o senhor, nem o filho, muito menos o caso concreto. Mas sobre este tipo de novela tenho uma opinião que guardo para mim. Mas poderia o Sr. Luís Fernandes, já agora, informar o dito senhor que não é bonito investigar a vida particular da funcionária, que apenas estava a cumprir a sua função, e também que uma avó tomar conta de uma neta não é exactamente um negócio? Agradecido.