sábado, 8 de abril de 2017

O INADMISSÍVEL PROLONGAMENTO DO CASO DA MULHER ACAMPADA





São 20h30 desta última quarta-feira. A Rua Eduardo Coelho parecia estar vazia, sem vivalma. Em passeio, caminhava em direcção à Praça do Comércio. Os candeeiros, sucedâneos dos antigos lampiões a gás de há mais de um século, a espreitar no alto da minha cabeça, muito sujos e com teias de aranha na vidraça e só deixando metade da sua transparência à vista, só há pouco tinham acordado para cumprir a sua função de iluminar, mal, uma via que, pela fraca luminosidade pública lhe confere um ambiente fantasmagórico. Foi então que comecei a ouvir umas risadas curtas e esganiçadas que ecoavam ao longo da artéria. Refreei a passada e fingi estar a ver uma montra completamente apagada.
Apercebi-me então da origem das gargalhadas histéricas. Em passo cadenciado, entre a paragem e o avanço, avistei uma jovem mulher. Conhecia-a imediatamente. Era a Sónia. Já escrevi sobre a sua estranha e prolongada permanência na rua. Desde Fevereiro que, alegadamente, por distúrbios psicológicos acampou num banco de madeira em frente à vetusta Igreja de São Tiago. Ao que parece, os seus familiares, a sofrerem com este impasse, não conseguem convencer quer o psiquiatra que a acompanha quer o Ministério Público de que a rapariga precisa urgentemente de ser internada compulsivamente para tratamento psiquiátrico.

Por aqui, pela zona comercial, por ventura não haverá ninguém que não a identifique. Perante o seu prurido de rir, as pessoas começam por olhar surpreendidas e depois de um diagnóstico rápido de desvalorização, manifestado num encolher de ombros, seguem o seu caminho. Afinal a Baixa, como todos os lugares habitados do planeta, sempre teve os seus loucos de estimação. Uns, porque nasceram diferentes, outros, por que são resultado da sua própria fragilidade biológica. Por vezes, a concorrer, as autoridades, que deviam ser lestas e cuidar da sua rápida recuperação, pelo contrário, estando mais preocupadas com direitos, liberdades e garantias, causam incompreensíveis dificuldades e o resultado final é a sua morte prematura.
Tenho a rapariga a dez metros de mim. Parece ignorar-me completamente. Agora parou. Como se estivesse a representar num grande palco, eleva as suas mãos e, dividida entre a cólera e um discurso paternal, soletra: “ele queria que tu fosses? Isso é que era bom! (ahahhahah) Não vás! Tu sabes muito bem o que deves fazer! Estás a ouvir-me? (ahahahhahhh) Faz o que te digo...
Como se eu fosse invisível, ultrapassou-me sem aparentemente dar conta de mim. Mais à frente, no largo do antigo armeiro Carlos de Almeida, voltou a estacar e, como a querer assustar os pombos estendidos nos beirais, como se troçasse de tudo e todos, voltou a dar vários gracejos em forma de grito satânico: ahahahahhhhahahah!
Lentamente, seguindo a sua curta silhueta esbelta, fui avançando. Pelo que tenho observado, sabia que se dirigia para o “seu” banco, o seu presumível porto de abrigo.



UM BANCO DE MADEIRA EM FORMA DE CASA

Sem saber quem vigiava quem, se era eu a ela ou ela a mim, sentei-me no banco ao lado. Tentando não dar nas vistas, fazendo de conta que apreciava a velha igreja medieval à minha frente, volta e meia desviava os olhos para a mirar. Dei por mim a pensar que, tendo em conta o período histórico da vetusta catedral, esta cena poderia perfeitamente ser inserida numa passagem do livro “Harry Potter”, da escritora inglesa J. K. Rowling, que viveu no Porto. Desde as tendas dos vendedores ambulantes, desprezados e maltratados por este e outros executivos que deveriam responder em tribunal por promessas nunca cumpridas, até aos prédios decrépitos à volta, tudo estava a coincidir.

Reparei que o seu banco de apoio tinha sido completamente ocupado com grossos cartões, roupas em desalinho, e muito lixo à mistura. Do meio daquele entulho todo, a mostrar que em todos os cenários impossíveis há sempre vida, saiu um pequeno cão de pelo acastanhado e aparentemente bem cuidado. Num ápice, largando a sua contemplação etérea e desnorteada, pegou no canídeo, levou-o até aos lábios cobrindo-o de beijinhos, e falou com o animal como de pessoa se tratasse: “tiveste saudades minhas? (ahahhhaha) Tiveste? Eu não te deixo... (ahahahahh)
Recostado nas ripas de madeira a suportar as minhas costas, pelo gosto em observar pessoas, imaginei-me o vagabundo Joe Stassio - um personagem dos livros policiais de Ross Pyne, um escritor português já desaparecido de nome Roussado Pinto, e que em adolescente fez o meu deleite de momentos de solidão. Ao ler os seus livros parecia que estava lá. Era como se, através da leitura, pudesse ouvir a aragem do vento, o chilrear dos pássaros, a tristeza que ia no coração das personagens.
Continuei a ver a estanha mulher. Fazendo perguntas e dando respostas, estava com a mesma lenga-lenga. Umas vezes a vociferar outras a apaziguar: “Não achas que já devias ter filhos, Inês?” -lembro que o seu nome é Sónia. Interrogava com uma inigualável convicção. “Eu acho que devias sim! (ahahahahah)”, para logo a seguir, numa moderação contida, responder: “Não, senhora! Ter filhos? Tens muito tempo! (ahahhhaah)”


Em pé, Sónia não parava quieta. Ora mexia no cão, ora revolvia os cartões e passava-os de um lado para o outro. Como se estivesse a arrumar a sua casa, lá ia debitando lamentos: “está tudo desarrumado! Uma mulher sai por momentos e quando volta está tudo num caos! (ahahahahah)
Depois de cerca de vinte minutos, largando gritos sarcásticos misturados com palavras, levantou-se, pegou em quatro garrafas de plástico de litro e meio, e dirigiu-se novamente para a Rua Eduardo Coelho.
Com razoável distância, seguia-a até à Praça 8 de Maio. Sentou-se no parapeito do lago que está no centro do antigo largo de Sansão. Arregaçou as mangas, mergulhou os braços na água turva e, esfregando-os com sabão, lavou-os obsessivamente. Os seus risos em esgar de ironia pareciam atravessar toda a velha praça. Passado um certo tempo, encheu as quatro garrafas com água suja e, levantando-se, foi colocá-las no parapeito de pedra da Igreja de Santa Cruz. Abandonando-as, virou-lhe costas e, por entre risadas descontroladas, dirigiu-se novamente para a Rua Eduardo Coelho. Antes de chegar à Praça do Comércio, fez um desvio para a Rua do Almoxarife e, enterrando as mãos no lixo que estava para ser recolhido, baldeou tudo e separou alguma coisa que lhe terá despertado o interesse.
Dei por encerrada a minha missão de análise comportamental. Naturalmente que não sou psiquiatra nem pretendo ser, mas, para entender melhor o que se passa, queria ver de perto como se comportava esta estranha mulher. Penso que, pelo meu exaustivo relato, dá para ver se a Sónia Monteiro está, ou não, plena das suas faculdades mentais. Será preciso fazer um desenho ao Ministério Público?

A TENSÃO AVOLUMA-SE

Sem uma solução à vista, já passaram cerca de dois meses em que Sónia Monteiro acampou na Praça do Comércio. Pelo que me foi dito, já se tentou que a rapariga fosse dormir a uma instituição próxima, porém foi sol de pouca dura. Voltou novamente a acampar junto à Igreja de S. Tiago.

Se numa primeira fase os comerciantes à sua volta, até movidos pela compaixão, lhe davam roupas, comidas e todo o apoio possível, talvez no aforismo popular de que um hóspede ao fim de uma semana já cansa, a verdade é que, segundo os seus lamentos, começa a ser perceptível na mulher uma certa animosidade e agressividade para quem a rodeia. Para piorar, provocando descontentamento nos lojistas vizinhos, o cão, para além de defecar em tudo o que é sitio, deu em roer algumas roupas em exposição dos vendedores. Um deles, pedindo o anonimato, desabafou: “já viu? Para além de termos de gramar todo esse lixo amontoado em cima do banco e limpar o cocó do animal várias vezes ao dia, ainda temos de suportar o prejuízo que nos está a causar? A mim já me roeu duas camisolas e uma “écharpe”. Quer dizer, o negócio está como está, e ainda temos de levar com isto?



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