São
20h30 desta última quarta-feira. A Rua Eduardo Coelho parecia estar
vazia, sem vivalma. Em passeio, caminhava em direcção à Praça do
Comércio. Os candeeiros, sucedâneos dos antigos lampiões a gás de
há mais de um século, a espreitar no alto da minha cabeça, muito
sujos e com teias de aranha na vidraça e só deixando metade da sua
transparência à vista, só há pouco tinham acordado para cumprir a
sua função de iluminar, mal, uma via que, pela fraca luminosidade
pública lhe confere um ambiente fantasmagórico. Foi então que
comecei a ouvir umas risadas curtas e esganiçadas que ecoavam ao
longo da artéria. Refreei a passada e fingi estar a ver uma montra
completamente apagada.
Apercebi-me
então da origem das gargalhadas histéricas. Em passo cadenciado,
entre a paragem e o avanço, avistei uma jovem mulher. Conhecia-a
imediatamente. Era a Sónia. Já escrevi sobre a sua estranha e
prolongada permanência na rua. Desde Fevereiro que, alegadamente,
por distúrbios psicológicos acampou num banco de madeira em frente
à vetusta Igreja de São Tiago. Ao que parece, os seus familiares, a
sofrerem com este impasse, não conseguem convencer quer o psiquiatra
que a acompanha quer o Ministério Público de que a rapariga precisa
urgentemente de ser internada compulsivamente para tratamento
psiquiátrico.
Por
aqui, pela zona comercial, por ventura não haverá ninguém que não
a identifique. Perante o seu prurido de rir, as pessoas começam por
olhar surpreendidas e depois de um diagnóstico rápido de
desvalorização, manifestado num encolher de ombros, seguem o seu
caminho. Afinal a Baixa, como todos os lugares habitados do planeta,
sempre teve os seus loucos de estimação. Uns, porque nasceram
diferentes, outros, por que são resultado da sua própria
fragilidade biológica. Por vezes, a concorrer, as autoridades, que deviam ser
lestas e cuidar da sua rápida recuperação, pelo contrário, estando mais
preocupadas com direitos, liberdades e garantias, causam
incompreensíveis dificuldades e o resultado final é a sua morte
prematura.
Tenho
a rapariga a dez metros de mim. Parece ignorar-me completamente.
Agora parou. Como se estivesse a representar num grande palco, eleva
as suas mãos e, dividida entre a cólera e um discurso paternal,
soletra: “ele queria que tu fosses? Isso é que era bom!
(ahahhahah) Não vás! Tu sabes muito bem o que deves fazer! Estás a
ouvir-me? (ahahahhahhh) Faz o que te digo...”
Como se eu fosse
invisível, ultrapassou-me sem aparentemente dar conta de mim. Mais à
frente, no largo do antigo armeiro Carlos de Almeida, voltou a
estacar e, como a querer assustar os pombos estendidos nos beirais,
como se troçasse de tudo e todos, voltou a dar vários gracejos em
forma de grito satânico: ahahahahhhhahahah!
Lentamente,
seguindo a sua curta silhueta esbelta, fui avançando. Pelo que tenho
observado, sabia que se dirigia para o “seu” banco, o seu
presumível porto de abrigo.
UM
BANCO DE MADEIRA EM FORMA DE CASA
Sem
saber quem vigiava quem, se era eu a ela ou ela a mim, sentei-me no
banco ao lado. Tentando não dar nas vistas, fazendo de conta que
apreciava a velha igreja medieval à minha frente, volta e meia
desviava os olhos para a mirar. Dei por mim a pensar que, tendo em
conta o período histórico da vetusta catedral, esta cena poderia
perfeitamente ser inserida numa passagem do livro “Harry
Potter”, da escritora inglesa J. K. Rowling, que viveu
no Porto. Desde as tendas dos vendedores ambulantes, desprezados e
maltratados por este e outros executivos que deveriam responder em
tribunal por promessas
nunca cumpridas, até aos prédios decrépitos à volta, tudo estava
a coincidir.
Reparei
que o seu banco de apoio tinha sido completamente ocupado com grossos
cartões, roupas em desalinho, e muito lixo à mistura. Do meio
daquele entulho todo, a mostrar que em todos os cenários impossíveis
há sempre vida, saiu um pequeno cão de pelo acastanhado e aparentemente bem cuidado. Num ápice, largando a sua contemplação
etérea e desnorteada, pegou no canídeo, levou-o até aos lábios
cobrindo-o de beijinhos, e falou com o animal como de pessoa se
tratasse: “tiveste saudades minhas? (ahahhhaha) Tiveste? Eu não
te deixo... (ahahahahh)”
Recostado
nas ripas de madeira a suportar as minhas costas, pelo gosto em
observar pessoas, imaginei-me o vagabundo Joe Stassio
- um personagem dos livros policiais de Ross Pyne,
um escritor português já desaparecido de nome Roussado Pinto, e que
em adolescente fez o meu deleite de momentos de solidão. Ao ler os
seus livros
parecia que estava lá. Era como se,
através da leitura, pudesse ouvir a aragem do vento, o chilrear dos
pássaros, a tristeza que ia no coração das personagens.
Continuei
a ver a estanha mulher. Fazendo perguntas e dando respostas, estava
com a mesma lenga-lenga. Umas vezes a vociferar outras a apaziguar:
“Não achas que já devias ter filhos, Inês?” -lembro que
o seu nome é Sónia. Interrogava com uma inigualável convicção.
“Eu acho que devias sim! (ahahahahah)”, para logo a
seguir, numa moderação contida, responder: “Não, senhora! Ter
filhos? Tens muito tempo! (ahahhhaah)”
Em
pé, Sónia não parava quieta. Ora mexia no cão, ora revolvia os
cartões e passava-os de um lado para o outro. Como se estivesse a
arrumar a sua casa, lá ia debitando lamentos: “está tudo
desarrumado! Uma mulher sai por momentos e quando volta está tudo
num caos! (ahahahahah)”
Depois de cerca de vinte
minutos, largando gritos sarcásticos misturados com palavras,
levantou-se, pegou em quatro garrafas de plástico de litro e meio, e
dirigiu-se novamente para a Rua Eduardo Coelho.
Com
razoável distância, seguia-a até à Praça 8 de Maio. Sentou-se no
parapeito do lago que está no centro do antigo largo de Sansão.
Arregaçou as mangas, mergulhou os braços na água turva e,
esfregando-os com sabão, lavou-os obsessivamente. Os seus risos em
esgar de ironia pareciam atravessar toda a velha praça. Passado um
certo tempo, encheu as quatro garrafas com água suja e,
levantando-se, foi colocá-las no parapeito de pedra da Igreja de
Santa Cruz. Abandonando-as, virou-lhe costas e, por entre risadas
descontroladas, dirigiu-se novamente para a Rua Eduardo Coelho. Antes
de chegar à Praça do Comércio, fez um desvio para a Rua do
Almoxarife e, enterrando as mãos no lixo que estava para ser
recolhido, baldeou tudo e separou alguma coisa que lhe terá
despertado o interesse.
Dei
por encerrada a minha missão de análise comportamental.
Naturalmente que não sou psiquiatra nem pretendo ser, mas, para
entender melhor o que se passa, queria ver de perto como se
comportava esta estranha mulher. Penso que, pelo meu exaustivo
relato, dá para ver se a Sónia Monteiro está, ou não, plena das
suas faculdades mentais. Será preciso fazer um desenho ao Ministério
Público?
A TENSÃO
AVOLUMA-SE
Sem
uma solução à vista, já passaram cerca de dois meses em que Sónia
Monteiro acampou na Praça do Comércio. Pelo que me foi dito, já se
tentou que a rapariga fosse dormir a uma instituição próxima,
porém foi sol de pouca dura. Voltou novamente a acampar junto à
Igreja de S. Tiago.
Se
numa primeira fase os comerciantes à sua volta, até movidos pela
compaixão, lhe davam roupas, comidas e todo o apoio possível,
talvez no aforismo popular de que um hóspede ao fim de uma semana já
cansa, a verdade é que, segundo os seus lamentos, começa a ser
perceptível na mulher uma certa animosidade e agressividade para
quem a rodeia. Para piorar, provocando descontentamento nos lojistas
vizinhos, o cão, para além de defecar em tudo o que é sitio, deu
em roer algumas roupas em exposição dos vendedores. Um deles, pedindo o anonimato,
desabafou: “já viu? Para além de termos de gramar todo esse
lixo amontoado em cima do banco e limpar o cocó do animal várias
vezes ao dia, ainda temos de suportar o prejuízo que nos está a
causar? A mim já me roeu duas camisolas e uma “écharpe”. Quer
dizer, o negócio está como está, e ainda temos de levar com isto?”
Sem comentários:
Enviar um comentário