Na
cidade denominada “Património da Humanidade”, a
rua é dos turistas. Num caldinho de línguas e sotaques, entre
espanhol, francês alemão e inglês, predominam estrangeiros vindos
dos quatro cantos do planeta. Numa entrada de porta que, até há
pouco, foi estabelecimento, a marcar a diferença entre o velho e o
novo mundo, um homem, vestido a preceito com blazer branco e calçado
com sapatilhas da mesma cor, num misto de personagens de Honoré de
Balzac, na “Comédia Humana”, e Miguel Sousa Tavares, no
livro “Equador”, parece desenquadrado do tempo e figura de
ficção.
De
cada lado do largo pórtico do prédio que não alberga ninguém,
escritos num português portuguesinho, vários cartazes
escritos a marcador tentam, sem conseguir, denunciar uma injustiça.
Os transeuntes, nacionais ou estrangeiros, como boi a olhar para um
palácio, miram aquele cenário como fazendo parte da miséria que
grassa no país. Os primeiros, os nacionais, pelo costume que se
tornou rotina e passou a fazer parte do dia-a-dia, já nem ligam e,
pela indiferença, passam imunes a qualquer tipo de protesto. Os
segundo, os estrangeiros, tiram fotografias para mais tarde recordar,
quem sabe para mostrar aos seus que Portugal não passa de uma nação
falhada onde a todo o custo, como postal ilustrado, se tenta vender a
ideia de um franco desenvolvimento e um crescimento económico
palpável. Para os políticos dos anteriores governos, do actual e
dos que hão-de vir, há muito que o cidadão médio é apenas um
número, coisa sem alma, em que o interesse maior por parte do
Estado é o que lhe pode sugar. A administração, em confisco de
tragédia, só está interessada em esbulhar. Só se safam os que
estão na base da pirâmide, os pés-rapados, porque nada têm,
ou os do vértice, porque os seus rendimentos são tão elevados que,
mais ou menos cortes ou maior incidência de impostos, pouca
diferença lhes faz. Quem está no meio, o pequeníssimo comerciante,
o pequeno proprietário, o pequeno rural, dono de umas courelas, o
aposentado com reformas de miséria, como boneco sempre em pé, é
quem está a pagar a factura. Curiosamente, este imoral estado de
degradação social, tão criticado por Raphael Bordallo Pinheiro,
esteve na base da queda da Monarquia e Implantação da República em
1910. E depois da Implantação continuou. E foi gerado o bom cidadão. E as comendas para aliviar a dor.
O
cidadão comum, que aos poucos foi perdendo tudo e até a capacidade
de se indignar, há muito que perdeu a esperança de, através do
voto nesta democracia de Estado lobo do homem, chegar a
um sistema que lhe devolva algum bem-estar prometido, tantas vezes de
quatro em quatro anos e perdido nas brumas da iniquidade, e uma
felicidade que, devendo ser intrínseca e geral, só pode ser
conquistada por compra de ansiolíticos.
MAS
AFINAL O QUE É QUE SE PASSA?
Antes
de entrar directamente na narrativa, dando voz ao injustiçado,
vamos debruçar-nos sobre o que transmitem os cartazes.
Num
dos lados da porta, pode ler-se: “Vende-se máquina
registadora, como nova, só 100 euros”. E ainda outro: “Dá para
relojoaria, perfumaria, ervanária, filatelia, numismática,
artesanato, jornais, revistas e tabacaria. Informa José de Melo”.
No
outro lado mais cartazes. Num deles, “Encerrado por falta de
solidariedade da Segurança Social que ajuda os romenos e outros e ao
Povo Português só sacrifica os beneficiários em presunção e não
em dados reais, pois não devo um cêntimo à Segurança Social e
tenho que pagar uma enorme multa, o mesmo é que nos sugar o sangue.
Exijo justiça”.
Mais em baixo outra
cartolina tenta espelhar a revolta: “Só lamento que os
serviços de fiscalização da Segurança Social não tenham
detectado fugas ao pagamento da mãe da fiscal. Colega à Seg.
Social”.
QUEM SE
(RE)VOLTA CONTRA A ARBITRARIEDADE?
O
homem sobre quem escrevemos dá pelo nome de José de Mello, tem 75
anos de idade, e está aposentado há cerca de uma década. Segundo o
próprio, descontou para a Segurança Social durante 42 anos e recebe
de reforma, mensalmente, 495 euros.
O
Mello é mais conhecido na Baixa da cidade que qualquer presidente da
câmara municipal, actual ou anterior. Durante décadas, até mais ou
menos 1990, trabalhou na desaparecida sapataria Capri, na Rua Eduardo
Coelho. Pela extinção do posto de trabalho viria a adquirir o
quiosque do Lobo, na Praça do Comércio. Ali se manteve até à sua
reforma que ocorreu por volta de 2005. Tendo em conta o seu
depoimento, nesta altura, como tinha um filho desempregado, o
Guilherme, viria a entregar-lhe o negócio. Porque ainda se sentia
com forças e não queria morrer aos poucos entre tascas e bancos de
jardim, o Guilherme arrendou uma entrada de uma porta larga na Rua
Ferreira Borges e, a vender coisitas, desde moedas, selos e
pequenos recuerdos, colocou lá o pai para ele estar
entretido. Este negócio estava em nome do Guilherme.
Porque o quiosque da
Praça do Comércio é, há muitos anos, agência do
Totoloto/Euromilhões, segundo o depoente, quando há transmissão
de um negócio a Santa Casa da Misericórdia suspende o contrato de
prestação de serviços com o novo adquirente. Porque a família
precisa de rendimentos e não se governa com suspensões, para que
isto não acontecesse, o quiosque da Praça do Comércio continuou em
nome dos seus pais, o Mello e da mulher. Por consequência, o
Guilherme passou a empregado dos seus progenitores e, nessa
qualidade, sempre fez as suas contribuições para a Segurança
Social. Ou seja, a Segurança Social não foi prejudicada.
Por outro lado, segundo
as suas palavras, ao adquirir a entrada de porta da Rua Ferreira
Borges para o pai se entreter, uma vez que o Mello estava reformado,
também não prejudicou ninguém. Sempre cumpriu com as suas
obrigações para o Fisco.
Aparentemente
estava tudo bem...
SUBITAMENTE
EM NOVEMBRO...
Em
Novembro último, do ano passado, vários lojistas foram alvo de
inspecção por parte da fiscalização da Segurança Social. Em
alguns estabelecimentos foram detectadas irregularidades. Até aqui
tudo normal, ou nem tanto. No que se levanta a questão de facto -não de direito
por que pelos vistos a Lei das Pensões da Segurança Social
prescreve a sanção-, o que é verdade é que alguns reformados
foram apanhados a trabalharem em lojas, a dar uma ajuda a familiares.
Um deles foi o José Mello.
É
justo levantar um auto a um reformado de 75 anos que está ajudar o
seu filho? Pelos vistos, legalmente é! A questão que se levanta é
se um pai, idoso e reformado, que trabalhou desde criança e fez
descontos para a Segurança Social durante 42 anos, pelo simples
facto de dar uma mão a um seu familiar, tem obrigação de descontar
ainda mais para o fazer. Sobretudo, falando nós de uma entrada de
porta e auferindo uma baixa aposentação, se é legítimo exigir-lhe
mais descontos? Pelo que se percebe é mesmo.
Talvez
se entenda como é que o recentemente anunciado crescimento de cinco
por cento das contribuições para a Segurança Social foi
conseguido.
VAMOS DAR
O MICROFONE AOS MELLOS
“Em Novembro,
último, entrou aqui uma fiscal da Segurança Social e interrogou
quem era o titular do estabelecimento. Eu disse que era do meu filho
e que eu, já reformado, estava aqui para o ajudar e, acima de tudo,
evitar andar por aí a percorrer tascas e a beber copos. A fiscal
disse que eu não podia estar aqui porque estava reformado.
Perguntou-me se o meu filho me pagava. Eu respondi que não recebia
nada dele. A funcionária não acreditou e presumiu que eu estava
aqui assalariado. Disse mesmo que “todo o trabalho deve ser pago”.
Posteriormente,
este mês recebi uma intimação para liquidar 800 euros de
contribuições que, alegadamente e em presunção, deveria ter pago
por um rendimento que não auferi. A coima ainda não foi calculada.
Como nuvem negra anunciada, há-de vir para me apoquentar ainda mais.
O meu Guilherme já
foi às Finanças dar baixa do estabelecimento. Já escrevi ao
Ministro da Solidariedade Social. É muito injusto. Eu não tenho
esse dinheiro. Se for mesmo obrigado a pagar, provavelmente, terei de
cortar no comer e deixar de comprar alguns medicamentos. É uma falta
de respeito por quem passou uma vida inteira a trabalhar.
Sabes o que me
chateia mais? Foi a fiscal dizer-me na cara, a frio, que todo o
trabalho deve ser pago. Posteriormente, vim a saber que esta senhora
fiscal tem uma criança que deixa todos os dias ao cuidado de sua
mãe. Diz-me tu: a progenitora desta senhora não está a tirar o
lugar a uma ama? Será que a sua mãe está a fazer descontos? Será
que não estamos a viver num mundo de loucos?
O QUE DIZ O GUILHERME?
“Não
pago nada ao meu pai. Nem poderia pagar. Era um pequeníssimo negócio
que, retirando os custos, pouco dava, ou nada -a não ser para ele
estar ali entretido. Não passei este quiosque da praça velha para meu nome por
causa do facto da Santa Casa da Misericórdia, sempre que há
transmissão, suspender o contrato do totoloto/Euromilhões e haver
um novo processo de concessão. Fui aconselhado a manter assim. Para
além disso, também pesou o facto de o meu pai ser doente e ter
dificuldades na visão. Sempre fiz os descontos e nunca prejudiquei a
Segurança Social.
Agora, com a coima
a balouçar sobre as nossa cabeças, já encerrei o quiosque da
entrada de porta na Rua Rua Ferreira Borges. Querem arrumar com a
sobrevivência dos pobres? É isto que querem? Era melhor o meu pai
andar por aí aos caídos? É tudo muito triste e demasiado aviltante
para ser verdade. É isto, este tipo de perseguição aos pequeninos,
que é o melhor para o país?”
1 comentário:
Eu não conheço o senhor, nem o filho, muito menos o caso concreto. Mas sobre este tipo de novela tenho uma opinião que guardo para mim. Mas poderia o Sr. Luís Fernandes, já agora, informar o dito senhor que não é bonito investigar a vida particular da funcionária, que apenas estava a cumprir a sua função, e também que uma avó tomar conta de uma neta não é exactamente um negócio? Agradecido.
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