quinta-feira, 2 de abril de 2015

O ARTISTA DE LESTE





Veio ter comigo há dias. Transpôs a porta, meteu a mão no bolso e puxou de uma carteira recente. Pretendia vendê-la, defendeu. Era o único bem que possuía e o único meio de fazer algum dinheiro. É um homem mediano, de meia-idade, cabeça calva, onde os cabelos que já a cobriram por inteiro decidiram emigrar, olhos vivos e perscrutadores. Exprime-se num português mal-amanhado e a fazer ressaltar a pronúncia de leste. A carteira não tem qualquer valor, repliquei para seu desalento. Em última cartada, em desabafo, o homem atirou: “Não ter uma única moeda no bolso. Estar muito aflito para pagar quarto e não quer estender a mão à caridade. Não ser capaz. Sempre trabalhar na vida. Nunca estar numa situação assim! Ser pintor e escultor. Ser ucraniano! O Marco enviar cá e dizer que você tinha escrito a história dele e também escrevia a minha” –contei a narrativa do músico polaco Marek Kepacs n’O Despertar, da edição de 20 de Março, e no seu fremente desejo de ter um acordeão para poder dar sentido e cor à sua vida.
Dei-lhe uma folha branca e um lápis e pedi-lhe para me mostrar o seu talento. Passado um bocado, e sob o meu olhar, tinha um Cristo, com ar sofrido, bem desenhado e com traço inconfundível de criador. Não tinha dúvida, à minha frente estava um artista, sem margem para dúvida. Se lhe arranjasse uma cana para pescar, como quem diz, tintas, pincéis e papel de aguarela será que estaria na disposição de ir para a rua pintar e tentar arranjar um meio de sobrevivência? Interroguei. “Claro! Claro! Só precisar mesmo de tintas e pincéis para trabalhar. Todo meu “respeto” para o senhor que tenha um grande “coraçau”. Neste meio tempo apareceram dois meus amigos e ouvindo a conversa e perante o desenho um disse logo que lhe oferecia um cavalete. O outro que lhe comprava as tintas e os pincéis. No dia seguinte o Sergiu Stefanov –conhecido por Sérgio- já estava a pintar no Largo da Freiria e pronto a tentar a sua sorte na rua. Ainda teve tempo para me mostrar uma espectacular escultura de um busto feito com jornais e farinha –e sempre a repetir: “eu não enganar. Eu ser artista! Acreditar em mim!”
Mas afinal quem é o Sergiu Stefanov? É ele que se vai apresentar. “Tenho 49 anos de idade, nasci em 1965. Sou romeno. Disse que era ucraniano para não me tomar por pedinte. Infelizmente sinto que o meu povo está muito mal visto por cá. Estudei na Roménia até ao 10º ano. Fui funcionário da Romtelecom durante cerca de uma década e até 1999. Deixou de haver trabalho e o dinheiro começou a escassear. No regime comunista de Nicolae Ceausescu vivi sempre bem, até à sua queda em Dezembro de 1989. Foi uma mudança violenta que resultou em mais de mil mortes. Desde cedo estive sempre ligado à escultura e pintura. Fiz três exposições em Botosani. Já em democracia, com a economia a dar voltas na barriga de miséria, desde pedreiro a pintor de interiores, a estucador, a artesão, a restaurador de móveis, até passando pela electromecânica, fiz de tudo e não chegou. Atirei-me à Europa e fiz dela a porta da minha esperança. Passei por Itália, Bulgária, França, Holanda. Nestes países fazia de tudo o que aparecia, desde a construção civil até apanhar fruta, e aproveitava o que calhava para sobreviver. Em 2013 vim para Portugal. Por cá, trabalhei numa quinta, na construção civil. Recusei sempre a estender a mão na rua. Tenho dignidade. Continuo a procurar trabalho. Estou inscrito no IEFP, Instituto de Emprego e Formação Profissional. Já tirei vários cursos profissionais, incluindo de português, mas não tem aparecido nada para eu mostrar o que sei fazer. Nunca recebi nada do Estado português até agora –embora já tivesse tratado da documentação para futuramente poder receber o RSI, Rendimento Social de Inserção. Até há pouco, com os trabalhos precários que tenho arranjado, fui conseguindo saldar a renda do quarto. Pago 135,00 euros. Mas agora é que toquei no fundo. Não sei o que fazer nem a que porta posso bater. Não quero ir para debaixo da ponte. Para as refeições, diariamente, vou à Cozinha Económica. Foi então que o Marek Kepacs me indicou o senhor. Pode fazer alguma coisa por mim? Pode ajudar-me?”

Sem comentários: