quinta-feira, 30 de abril de 2015

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "CARTA A UM PARVO QUALQUER", deixo também a crónica "DEUS NOS LIVRE DA LISÍSTRATA".


CARTA A UM PARVO QUALQUER

Viva meu papalvo. Espero que esta carta te vá encontrar de boa saúde… física, pelo menos, porque mental estás completamente senil, meu velho. Não te esforces em contraditar-me. Não vale a pena. Conheço-te melhor do que tu próprio alguma vez almejaste conhecer-te. Não mates a cabeça em tentar adivinhar quem sou. Basta apenas parares para refletir. Tu andas mal, meu! Muito mal, mesmo. Estou profundamente preocupado contigo –acredita, este foi verdadeiramente o motivo por que decidi escrever-te. Bem sei que não vais ligar nenhuma, porque te conheço bem, mas mesmo assim arrisco enviar-te esta missiva. Mesmo não sendo presciente, adivinho o teu sofrimento, a tua dor plasmada no teu rosto hermético que há muito não sorri de vontade. Andas muito triste, bem sei. Afivelaste essa máscara de solidão há uns anos e, como ela se te colou à face, nunca mais a largaste. Sei muito bem que, quando escreves, procuras focalizar os teus pensamentos na vida dos outros. Raramente falas de ti, da amargura que te corrói as profundezas da alma. De ti, escreves apenas banalidades, passagens que não despertam o mínimo interesse. Fazes essa descrição simplista para enganares quem te lê, para que pensem que te conhecem e que compartilhas as tuas preocupações com eles, mas eu sei que não. Tu falas muito pouco da tua amargura, dos teus sonhos frustrados, em tentares ser o que nunca conseguiste. Não descreves essa tua luta surda, obsessiva, em direção a um horizonte desconhecido. Pareces um boneco de corda a quem rodaram a pega e enquanto se não acabar a força continua sempre em frente, mesmo a arrastar-se pelo solo, meu. Queres provar o quê? A quem? Esquece essa predestinação, meu! O teu pai já morreu há quase uma vintena de anos e já não quer saber de nada de ti… se é que alguma vez, enquanto vivo, se preocupou contigo. Não vale a pena, é tempo perdido, continuares a querer demonstrar-lhe que, quando ele te dizia que “dormias muito e nunca serias nada na vida”, estava enganado. Onde quer que ele esteja já viu certamente. Deixa de te preocupares com os outros. Preocupa-te apenas contigo. Já estás a ver que essa tua inquietação com quem te rodeia não te conduz a lado nenhum.
Lembras-te quando o teu pai, esquinado, completamente bêbado, batia na tua mãe junto ao borralho e tu, encolhido a pedir às Alminhas para não levares também, fazias uma promessa solene para ti mesmo de que nunca irias ser assim? Jamais baterias na tua esposa um dia quando fosses homem? Jamais te embriagarias? De que te aproveita isso? Não seguiste tu o caminho do teu pai, como castigo divino, imita o teu filho o avô. Valeu-te alguma coisa? O que sentiste esta noite quando o foste recolher ao hospital completamente carregado de álcool e sem dar acordo de si? O que sentiste quando há tempos, lá em casa, verificaste que todas aquelas garrafas que guardavas para uma ocasião especial estavam vazias? Não faças essa cara de surpresa, meu. Eu conheço-te bem. Sei tudo a teu respeito. Lamento por ti, podes crer mesmo. Bem sei que tanto te esforçaste para dares aos teus filhos uma vida que não tiveste. Lembras-te quando fizeste o exame da 4ª classe, tiveste os teus primeiros sapatos, calça de terylene e camisa tv, e, para que todos na aldeia vissem a tua roupa nova, foste sentar-te no patim do adro da capela? Recordas quando chegaste à cidade com uma saca de pano onde não teria dentro mais do que medos de falhar no novo emprego e poderes não aguentar, no mínimo, um ano? Se acontecesse o contrário, lá na aldeia, serias considerado um estroina e valdevinos que não parava em lado nenhum. Estás a visualizar, meu? Consegues rememorar quando entre os 10 e os 16 anos compravas roupa usada com as gorjetas que te davam no emprego? E as tuas vestes eram lavadas durante a noite para vestires no dia seguinte, tantas vezes enxovalhada e húmida? Consegues reviver o caminhares com uns sapatos, dos mais baratos que havia –do “Campeão Português” e que custavam 80 escudos, hoje 40 cêntimos- completamente com a sola gasta, com um buraco no meio, e que até evitavas calcares as pedras mais salientes?
Quiseste facultar tudo o que não tiveste aos teus filhos. Sentias que tinhas obrigação de lhes dares o que não tiveste. Enquanto criança, nunca o teu aniversário foi comemorado. O Natal e a Páscoa, idem aspas. Nas datas importantes como a comunhão solene, por exemplo, estiveste sozinho. Nunca esqueceste esse lapso dos teus pais, meu. Pois, como se tivesses essa memória a queimar-te a mente, para os teus filhos estiveste sempre nas datas mais importantes das suas vidas. Algumas vezes ias a correr e chegavas já depois do espetáculo ter começado. Levantavas os braços para eles verem que estavas lá. Eu sei, meu. Eu acompanhei essa parte da tua história. É triste, meu, quando às vezes te acusam de não lhes teres dado carinho. É ofensivo, meu. Tu fizeste tudo para que fossem felizes. Aliás, tenho a certeza de que, ao longo da tua existência, a tua família esteve sempre presente. Até te digo sem pestanejar que os interesses deles foram sempre colocados depois dos teus. Vai ver as cassetes de vídeo, quando eles eram pequenitos e lá se pode ver, nas brincadeiras, o ar de felicidade comum. Como te podem acusar de não lhe teres dado afeto? Oferecer um brinquedo que nunca se teve a um filho não é um ato de carinho? Dar uma camisola de marca que nunca se pode ter é o quê? Deste de mais, meu. Esse é o problema. Deverias saber que só damos valor às coisas quando não as temos. E tu deste por não teres tido. Gozavas o sentimento de posse da mesma forma como se fosse para ti. E eles tiveram tudo o que a classe média da altura detinha, para que não se sentissem complexados, inferiorizados, perante os colegas na escola. E tu trabalhavas, trabalhavas cada vez mais para que nada lhes faltasse. Como a remendar o teu passado, deste-lhes sapatos, calças e blusões caros, de luxo. Tu que não pudeste ir estudar para o liceu, porque os teus pais eram muito pobres, aprender solfejo – a tua música era o assobio que sempre te acompanhou a trabalhar e até há uns anos- deste tudo isso aos teus herdeiros. Recordas quando a tua filha entrou na Faculdade e choraste como uma Madalena? Naquela entrada na universidade tu sentiste como fosse o teu ingresso. Era a tua projeção existencial que estava em causa. O preenchimento de uma lacuna. Um buraco que tentavas tapar. O grave é que, às vezes, por mais que tentemos remediar um problema ele será sempre irresolúvel. E quanto mais nos esforçamos para a sua solução maior é o fosso cavado entre o ofendido e o agressor. É como tentar alterar um destino previamente escrito nas calendas do tempo.
Não vale a pena continuares a recriminar-te, meu. Agora é tarde. E toma atenção: o que não pode ser solucionado resolvido está. Bem sei que gostavas de ver os teus filhos encaminhados na vida, mas o que podes fazer? O que podias, no que estava ao teu alcance, fizeste. Agora é com eles. Tal como na natureza, com os passarinhos, apenas somos responsáveis pelos filhos até conseguirem voar. A partir do momento em que o podem fazer o seu futuro passa para as suas mãos, na sua vontade. Compreendo-te bem, meu. Gostavas que os teus herdeiros dessem valor às coisas como tu dás. Mas como, meu? Se não sofreram o que tu sofreste para as conseguir? Foi tudo fácil para eles. Estás farto de saber que o sofrimento apura a alma, eleva o espírito. Se aceitas que é assim, porque continuas a teimar? És burro, meu? Eu entendo. Acredita que entendo. Custa ver um projeto de vida ir por água abaixo, ao sabor da corrente. É um sofrimento que se arrasta há muitos anos. É uma areia na engrenagem que vai causando mossa nas relações entre ti e a tua mulher. Estou a ver a coisa, meu. As mães, com o seu obsidente sentimento de amor pelos filhos, tentando tapar as suas falhas graves, acabam por destruir os elos que sustêm a própria família. É natural, eu sei, meu. Mas é um bocado estúpido, não é? Nenhum primogénito merece a separação dos pais, sobretudo quando lhe foi dado todas as oportunidades para se reinserir na sociedade. Todos, individualmente, através do trabalho, devemos contribuir para a riqueza e o desenvolvimento da prole e, por inerência, do país. Não há máximos –isso já depende da ambição de cada um e até onde quer chegar-, mas há mínimos exigíveis para sermos cidadãos transversalmente com os mesmos direitos e obrigações. Não pode haver “pão para malucos”. Só pode ter direito a broa na mesa quem se esforça e contribui para a ter. O bem-estar conquista-se, não cai do céu.
Comecei com esta retórica, meu, desculpa, bem sei que comungas da mesma opinião. Infelizmente não tenho soluções para o teu caso. Resta-me apelar à tua santa paciência. O tempo resolve tudo… E se não resolver, repito, solucionado está. Desculpa, também, ter-te chamado parvo. Não és. Bem sei que não és. Um grande abraço, meu.


DEUS NOS LIVRE DA LISÍSTRATA

Na última sexta-feira quando o relógio da torre da Igreja de São Bartolomeu marcou mais ou menos 21h30 o pequeno largo da Rua de Sargento Mor estava repleto de mulheres. Se não me engano, só um homem estava lá –no caso, era eu porque fui contratado para reportar o evento para o grande público nacional e internacional e, por isso mesmo, peço desculpa ao meu género mas, como se deve entender pela falta de trabalho, não podia dizer que não. Juro pela minha avozinha que estava, e estou, completamente solidário com a classe masculina. Bem sei que você não está a perceber nada da minha prosa, mas faça o favor de ir com calma que já explico tudo. Como sabe a ansiedade é terrível para o ato. Desmancha tudo em três tempos e um homem, perante a mulher, fica estarrecido e mais dócil que um cordeirinho perante a mamã.
Vou então partir para o que me motivou a escrever esta crónica. O caso é este: dois jovens, o Dinis e a Mónica, finalistas do Curso de Teatro, lembraram-se de levar à cena a peça “Lisístrata”, de Aristófanes – O argumento gira em torno de um grupo de mulheres que, para impedir que os seus companheiros vão para a guerra, se agrupa e, usando o melhor instrumento que uma mulher tem para os pressionar –refiro a inteligência- fazem greve ao sexo. Então contactaram sete mulheres, de tomates, salvo sejam, oriundas da Rua de Sargento Mor, a Hermínia, do Cantinho da Anita, a Helena, da Loja Lena, a Marta, do Talho Sargento Mor, a Graça, do Restaurante Orpheu, a Anabela, da Retrosaria Ziguezague, a Ana, da sapataria “Low Cost”, e a Maria Patrocínio, do restaurante 007, todas mulheres de negócio na reputada artéria. E se isto alastra? Ai senhor! O que vai ser de nós, homens? *


* Por questões de espaço no jornal, fui obrigado a amputar o texto original, que escrevi no própria dia. Como não quero que lhe falte nada, leitor, vou plasmá-lo aqui novamente.

DEUS NOS LIVRE DA LISÍSTRATA

Mais logo quando o relógio da torre da Igreja de São Bartolomeu marcar mais ou menos 21h30 o pequeno largo da Rua de Sargento Mor vai estar repleto de mulheres. Se não me enganar, só um homem vai estar lá –no caso, eu porque fui contratado para reportar o evento para o grande público nacional e internacional e, por isso mesmo, peço desculpa ao meu género mas, como se deve entender pela falta de trabalho, não podia dizer que não. Juro pela minha avozinha que estou completamente solidário com a classe masculina. Aliás, até vou mais longe, isto é uma afronta reacionária à classe trabalhadora. Fogo! É uma falta de respeito para quem tanto trabalha. Porque uma coisa é estar de perna-aberta e dizer “anda cá meu amorzinho, salta para cima de mim!”, outra, é um homem diligente, para além de ter de parecer um grande garanhão, ter de ser, mostrar que está à altura e que tem mesmo de desempenhar o seu papel como deve ser. Porque, vamos lá, um sujeito quando está na função não pode representar. Ou é ou não é! Bem sei que você não está a perceber nada da minha prosa, mas faça o favor de ir com calma que já explico tudo. Como sabe a ansiedade é terrível para o ato. Desmancha tudo em três tempos e um homem, perante a mulher, fica estarrecido e mais dócil que um cordeirinho perante a mamã.
Vou então partir para o que me motivou a escrever esta crónica –que, como plasmei em cima, estou indignadíssimo, mas passemos à frente. O caso é este: dois jovens, o Dinis e a Mónica, finalistas do Curso de Teatro, lembraram-se de levar à cena a peça “Lisístrata”, de Aristófanes –calma que já conto o que é isto! Então contactaram sete mulheres, de tomates, salvo sejam, oriundas da Rua de Sargento-mor, a Hermínia, do Cantinho da Anita, a Helena, da loja Lena, a Marta, do Talho Sargento-mor, a Graça, do Restaurante Orpheu, a Anabela, da Retrosaria Ziguezague, a Ana, da sapataria “Low Cost”, e a Maria Patrocínio, do restaurante 007, todas mulheres de negócio na reputada artéria. Então os “miúdos” –porque levar uma peça destas à cena só pode mesmo ser obra de rapaziada nova-, cheios de força e sem calcularem a revolução que pode dar -para o prejuízo, é claro- ao pessoal másculo, toca de as orientar para a representação. Como escrevi em cima, será mais logo, se não chover –mas cá para nós, Deus queira que chova a potes!
Então em que consiste a peça de teatro? Pois! Aqui é que a coisa bate! O argumento gira em torno de um grupo de mulheres que, para impedir que os seus companheiros vão para a guerra, se agrupa e, usando o melhor instrumento que uma mulher tem para os pressionar –refiro a inteligência, pensava que era o quê?-, fazem greve ao sexo. Ora aqui é que bate no rebate! Imaginemos que isto alastra? Como é que eu e outros cá como o “je” ficamos? Não é por nada mas embora custe a admitir, de uma forma não declarada, já somos dominados pelo género feminino. As mulheres, para o género masculino, são a ditadura do proletariado. São a opressão e a instrumentalização através da delicadeza. Contrariando o filósofo Hobbes, que escreveu que o homem é lobo do homem, a mulher é a loba do pobre homem. Claro que a guerra está aberta e, por este andar, vai haver muitas mais baixas –deve ser por isto que os homens estão a dizimar as mulheres, não deve? Por que as guerras têm sempre na génese a perda e a conquista de poder. É ou não é? E não estou a escrever que concordo com a extrema violência, de maneira nenhuma. Eu sou do tempo em que numa mulher não se batia nem com uma flor –é óbvio que isto era a mitologia do tempo, o que se apregoava na rua. Dentro de casa era cada arraial de pancadaria que até metia medo e no dia seguinte aparecia a senhora toda pisadinha. Tinha caído na escada num acidente inglório, invocava a própria.
Voltando à peça de teatro “Lisístrata”, apresentada pelas garbosas mulheres da Rua Sargento Mor, se isto se espalha, se outras mulheres lhe tomam o exemplo, será como derramar gasolina sobre uma fogueira. Pode ser muito pior para nós, homens, que a peste bubónica no início do século XX. Mesmo tendo de aturá-las e sermos seus (in)fiéis servidores, sem elas, a nossa vida é bem mais complicada. Apesar de serem uma dor de alma, sem elas, não sobrevivemos. Não alterem este estado de coisas. Pode ser? Apesar da minha novena prometida à Rainha Santa não choveu e a representação foi muito ovacionada. Deus queira que não repitam!



 



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