terça-feira, 28 de setembro de 2010

JUSTIÇA: BARREIRAS INVISÍVEIS

(IMAGEM DA WEB)








É preciso ter em conta que muitos dos problemas no seio da aplicação da justiça não têm a ver apenas com as leis, mas sim com o comportamento dos agentes judiciais, porque das suas atitudes depende, muitas vezes, a resolução dos problemas.” –in Diário de Coimbra, de 26 de Setembro, último. Palavras de Rui Alarcão, numa conferência sobre “Justiça e Cidadania, no auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Há cerca de uma semana desloquei-me a um departamento do Ministério Público em Coimbra, para apresentar queixa de um caso de violência doméstica –como todos sabemos é considerado “crime público”, o que quer dizer que qualquer cidadão, independentemente de ser ou não interveniente, desde que tenha conhecimento, pode apresentar libelo.
Antes de prosseguir, convém clarificar a razão de o legislador ter recorrido a este instrumento legislativo. Acontece que não sendo crime público a vítima, em qualquer altura do processo de inquérito, e mesmo à boca do julgamento, pode desistir da acção. Ora até ser crime de âmbito público, o que se verificava é que as padecentes, algumas vezes, logo no dia subsequente à participação policial iam retirar a queixa, o que, na prática, se traduzia numa continuação da sevícia por parte do opressor. Naturalmente, e após a interrupção da acção judicial, com muitas mortes à mistura.
Por outro lado, ao preconizar e chamar a si a violência doméstica como crime público, o legislador não fez mais do que alargar a prevenção para futuros acontecimentos. É como se o “construtor de leis”, metaforicamente, se dirigisse ao público em geral e dissesse: “a partir de agora, vocês, vadios, desempregados, trabalhadores, empresários, funcionários públicos, todos são co-responsáveis na prevenção pública de um qualquer caso que tenham conhecimento e não o denunciem”.
Há ainda uma outra questão subjacente que poderemos especular: passaram a haver muitas participações infundadas. E, a ser assim, qualquer um, porque não gosta do vizinho, vai queixar-se dele. É assim? Em princípio não será, mas, no conseguinte, pode acontecer. No entanto, alguém injustamente acusado pode sempre recorrer a um instrumento de ressarcimento: a denúncia caluniosa.
Então, depois desta enorme e comprida ressalva, vamos ao meu problema. Porque tive conhecimento de um caso de violência doméstica, em que, contrariamente ao comum, nunca foi, pelo menos até agora, usada a agressão física. Conto esta história aqui.
Desde há 15 anos para cá, desde que ficou desempregado, o homem começou a embriagar-se diariamente por sistema. Já se sabe que o álcool é inimigo de qualquer relação saudável, quanto mais –como é o caso- de se tratar de um enlace sem amor e com quarenta anos de casamento. Acontece que esta ocorrência é acompanhada com um facto que se pode transformar a qualquer momento em explosivo e com uma morte ou duas à mistura. Ou seja, para clarificar melhor: o homem é caçador –embora não cace há anos-, tem uma caçadeira em casa, licença de uso e porte de arma. Para piorar: nos últimos tempos, devido à degradação relacional entre cônjuges, o homem começou a ameaçar a consorte de morte e acrescentando que em seguida se suicidava. Como já há vários anos que dormem em quartos separados, durante a noite, para além de trancar e fechar a porta à chave, a mulher, temendo pela sua própria vida, repousa em constante sobressalto.
Dizia eu então, a começar o texto, que há cerca de uma semana desloquei-me a um departamento do Ministério Público. Ao abrigo da violência doméstica –porque, embora seja formal, existe mesmo-, tentei denunciar este caso. Sobretudo para que, através de um exame psicológico –uma vez que o detentor da arma é alcoólico-, e depois de exame médico e comprovada disfunção, lhe fosse feita a cassação da licença e apreensão da arma.
O que disse o agente, oficial de justiça? Começou logo por levantar problemas à minha participação. Disse mesmo, perante a minha insistência, taxativamente que, “muito bem, se eu queria formalizar a participação que poderia fazê-la, mas que isto não ia dar em nada. Havia queixas na polícia da zona? Se não havia, não havendo historial O que ia acontecer seria o arquivamento puro e simples”.
Perante a minha insistência de que o caso, estando sob alçada pública, eu poderia participar e com isso, se calhar, prevenir uma futura morte, exclamou o agente: “isso é estatística…na prática, nada disso acontece!”
 Continuei a argumentar que o que estava a relatar se passava na aldeia e, embora estivesse em crer que muita gente saberia, havia muita vergonha associada. Isto é, chamar a polícia é sempre um acto extremo. Então, no meu modesto entendimento, muitas vezes, a violência vai queimando em lume brando, até um dia em que há mortes e tudo bate no peito, em exclamação de surpresa: “não pode ser! Eram tão boas pessoas!”. Enfatizou o agente: “cão que ladra não morde! O melhor era apresentar queixa no posto da Lousã e conjuntamente com a vítima, para que esta não viesse a dar o dito por não dito”.
Perante o apriorismo e o cepticismo do funcionário acabei por não apresentar participação pública em Coimbra e remeti o caso para uma outra solução.
Ora, dando razão a Rui de Alarcão, os funcionários da justiça, que deveriam estar abertos e prontos a ouvir, não impondo barreiras à prevenção de violência com as suas sentenças antecipadas “a priori”, talvez sem se aperceberem, estão a contribuir para mais mortes que poderiam ter sido evitadas.
E não escrevo isto de ânimo leve. Já há três anos contei aqui a minha odisseia para apresentar uma queixa também de violência doméstica.
Com este texto, embora valha o que vale e chegará onde chegar, é preciso tomar conta que, como disse também Rui de Alarcão, “os problemas e a crise da justiça não se resolvem, apenas nem principalmente, com as leis”.

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