sexta-feira, 24 de março de 2023

13 HORAS À ESPERA NO EXTERIOR DOS HUC… (ENSAIO PARA UM FUTURO MELHOR)

 





Era Segunda-feira desta penúltima semana de Março. Estava um dia lindo, resplandecente, soalheiro como a anunciar a primavera. Mau dia para aqueles cujo sistema imunitário falhou e, por causa de acidente, grave ou leve, com dor, tosse ou mal-estar, os obrigou a recorrer às urgências de um qualquer hospital, privado ou público.

No caso que vou narrar trata-se dos CHUC, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE.

Com dores no peito, uma tosse profunda, tonturas e alguma dificuldade em respirar seriam cerca de 14h30 quando transportei a minha mulher e transpusemos a porta sensorial do Hospital neste dia de sapateiro.

Como ela sentia um profundo desequilíbrio, quando demos entrada nas urgências procurei uma cadeira de rodas vazia para a acomodar. Nem de propósito, alguém, que se prestava a sair, largou uma junto a nós.

Dirigimo-nos ao balcão e fizemos a inscrição para atribuição de uma pulseira de cor que, de acordo com a “Triagem de Manchester”, significa o vermelho (emergente), laranja (muito urgente), amarelo (urgente), verde (pouco urgente) e azul (não urgente).

O funcionário, depois de nos questionar num resumido inquérito, entregou uma cinta amarela à minha consorte.

Apesar de avistar vários funcionários, entre médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar a entrecruzar-se pelo meio de muitas macas com doentes, ninguém se preocupou em nos indicar os passos a seguir. Vi logo que ali funcionava o “quem tem boca vai a Roma”. Pedi a informação a um bombeiro, certamente à espera de um utente para o conduzir de regresso na ambulância, e foi-me indicado.

Continuei a empurrar a cadeira até uma pequena sala com várias cadeiras ocupadas à espera da chamada para classificação e encaminhamento para os vários serviços médicos correspondentes.

Cerca de meia-horas depois, uma voz agridoce anunciava numa coluna de som pregada no tecto: “Ana Maria (…) no Gabinete 1”.

Pensei para comigo que, pela rispidez da chamada, deveria ser uma médica com os pés para a reforma, agastada e farta de auferir pouco para tanto esforço. Mentalmente comparei com o som adocicado das vozes digitais dos megafones das estações de comboios.

Lá nos aprontámos e penetrámos num pequeno gabinete onde, em frente a um ecrã de computador, uma rapariga ainda nova, talvez com vinte e poucos anos, de bata branca, nos recebeu sem grandes alardes de simpatia. Com um seco: “De que se queixa?”, foi tomando notas na máquina digital. Quando acabou o inquérito, virou-se para mim e, sem grande empatia, ordenou: “vai ter de sair. Não pode estar aqui!

Mais uma vez tive de recorrer a pessoal exterior ao hospital para saber onde era a sala de espera para acompanhantes.


II


A sala de espera era num contentor exterior com cerca de 60 metros quadrados. Lá dentro, com uma casa-de-banho e restante área ampla, meia centena de lugares sentados em chapa de ferro com buraquinhos, alinhadas, a formarem o rectângulo, estavam parcialmente ocupados e poucos lugares vagos.

Do lado esquerdo, uma máquina, muda e encimada por um visor, cumpria uma missão importante, mas não dava a conhecer a sua utilidade. Mais uma vez, vendo fazer outros e interrogando, se ficava a saber que era o instrumento, a ponte para saber informações dos doentes previamente depositados na urgência. Depois de colocar um dedo no equipamento, como se agradecido pelo afago, dava-nos uma senha com um número sequencial, que, a seu tempo, devagar, por que ali, contrariando a azáfama das urgências, calmamente alguém chamaria. E de facto, como a interromper um pensamento, uma voz feminina quebrou a quietude da construção provisória: “Senha I – 220, no gabinete 2”.

Logo a seguir, em fustigo de megafone engasgado, nova mensagem: “Familiares de Luísa ... na entrada das urgências”.

Por cima e do lado do acessório mudo, três aparelhos de ar condicionado, marcando 25 graus de temperatura, trabalhavam incessantemente naquela tarde calorenta. Como um relógio parado que está certo duas vezes, aqueles apetrechos de renovação de ar também iriam estar bem regulados durante a noite, que se adivinhava fria e pouco aconchegante.

Na parede em frente um LCD, sintonizado na TVI, como um pregador que ninguém se interessava por ouvir, debitava toda a sua programação.

No mesmo lado, encostadas à casa-de-banho, duas máquinas de “vending”, uma com sandes, chocolates, sumos e água, outra para bebidas quentes, chá, café, chocolate quente.

Do mesmo lado direito de quem entrava, uma estreita mesa mantinha em cima um frasco com álcool desinfectante. Num novo costume, a fazer lembrar o mergulho da mão na pia de água-benta e acompanhado do sinal da cruz ao entrar numa igreja, a maioria purificava as mãos.

Depois de arranjar um lugar vago, acomodei-me o melhor possível num canto do salão com uma visão ampla do espaço. Embora não fazendo ideia do tempo que iria permanecer ali à espera, ia preparado para esperar: levava comigo três jornais, um diário e dois semanários.

Volta e meia levantava os olhos dos periódicos e apreciava o que se passava ao meu redor. Comecei a aperceber-me que muitos acompanhantes, pretendendo adquirir um produto das máquinas de venda automática para comer ou beber, começavam a distribuir palmadas e apalpadelas no mecanismo. Mas a coisa, como mulher enrugada e habituada a carinhos e açoites nos campos agrestes do interior, não cedia. Num quadro de solidariedade alguém se levantava e ia ajudar o desconhecido.

Enquanto via repetidamente este quadro, pensava se, quando chegasse a minha hora do lanche, iria acontecer a mesma coisa. Apostei comigo que era capaz de me entender com a “barriga de aluguer alimentar” a troco de moedas.


III


Ao meu lado uma família cigana de um reconhecido clã conimbricense estava ali representada em quatro gerações. Entraram cerca das 15h00 a, segundo ouvi, acompanharem um idoso ao serviço de urgências. As horas iam passando e, sem informações do seu familiar, sobretudo homens mais velhos e mais novos, ora davam uma passagem ao exterior, ora se acomodavam na cadeira. Um deles, da geração mais recuada, de voz rouca e um pouco entaramelada, usando na cabeça um chapéu à texano, conversava com o ancião no inconcebível passar de horas sem saber nada do seu ente querido. Mesmo ao meu lado consegui perceber: “Há muitos anos, fulano trouxe aqui um tio. Demoraram horas a atendê-lo. Então, irritado pela pouca atenção dada pelo pessoal médico, partiu a porta e entrou por ali dentro. Acabaram a dar-lhe razão”.

Mais ao lado, duas raparigas da mesma etnia, com vinte e poucos anos, vestidas informalmente com saias de ganga, e uma delas com um menino de cerca de quatro anos ao colo, volta e meia recebia um telefonema a pedirem-lhe informações do doente. Reparei na linguagem cuidada e demonstrando uma cultura acima da média. A outra colega, instigada por uma senhora mais velha, falava com desenvoltura, simpatia e conhecimento. Pensei para mim que, apesar das dificuldades, a batalha pela inclusão deste povo está fazer-se a bom ritmo. E é pela geração das mulheres mais novas.


IV


Eram cinco horas da tarde, tinha concluído a leitura do diário, um dos três jornais que levei para, se necessário, me fazer galopar no tempo. Como sempre faço em situações análogas, pousei o caderno informativo na pequena mesa junto à entrada, para, por um lado, no princípio de economia circular, dar uma nova utilidade ao que já era imprestável para mim. Por outro, porque gosto de fazer este teste para contabilizar os visitantes que iriam desfolhar o título.

Levantei-me e cliquei na máquina das senhas para saber como estava a minha doente preferida. Apesar dela ter ficado com o telemóvel, achei preferível saber informações mais personalizadas.

O meu estômago começava a reclamar por mais atenção. Era chegada a hora de testar a minha esperteza para me entender com a máquina vendedora de comida e bebida. Preparado para o embate, lá fui eu armado em cavaleiro e postei-me em frente da besta. Claro que eu não me iria deixar ficar mal. Olhando de cima a baixo, não consegui entender aquilo. Fónix. Tal como muitos que me antecederam, o remédio foi pedir ajuda para merecer atenção do objecto digital. E pronto, com uma sandes, uma bebida e um chocolate no regaço, estava formado mais um ajudante para outras gentes em dificuldades idênticas. Por curiosidade, chamou-me a atenção os acessíveis preços praticados dos bens.

Regressei ao meu lugar de observação para saciar a fome e à espera de ser chamado para obter informações da minha Ana.


V



E o número da minha senha, em alto som, foi chamado ao gabinete 1. Importava agora encontrar a sua localização. Sem sinaléctica à vista, a coisa não parecia fácil. Mais uma vez o “quem tem boca vai a Roma”. Era no interior do piso das urgências. Uma médica de meia-idade, de sorriso fácil e cativante, recebeu-me com amabilidade. Ao meu comentário de que tinha sido difícil encontrar o gabinete replicou: “Sabe, estamos em obras, está tudo um pouco mais complicado. Atendemos aqui mais de duzentas pessoas a solicitarem informações”. Perante o seu ar assertivo, fiquei sem reacção. Quanto a algo sobre a minha parente disse: “Sei que está a fazer exames, mas aqui não consigo dizer mais nada”, enfatizou.

Acompanhado pelo clamor constante de ambulâncias a passar, regressei ao meu lugar. A sala de espera continuava cheia, praticamente, com as mesmas pessoas. Volta e meia a porta abria-se para deixar passar quem ansiava por saber da saúde de alguém próximo.

A família cigana continuava alerta. De tempos a tempos o telefone tocava para saber do estado do patriarca. E uma das raparigas mais novas confidenciava: “Estamos aqui desde as 15h00. Não sabemos nada ainda”.

Liguei à minha mulher para saber como estava. “estou sentada numa cadeira, já me levaram a de rodas. Ainda não me fizeram nada, nem me perguntaram o que estou a fazer aqui. Isto parece um cenário de guerra, com macas a baterem umas nas outras com os doentes a pedirem atenção e o pessoal médico e auxiliar a atropelarem-se uns aos outros”.

Quando lhe perguntei se já tinha comido alguma coisa, respondeu: “Ainda não me deram nada. Já pedi um copo de água, mas cada um sacode a pulga do capote dizendo que não é com ele”.


VI


Já passava das 18h00, a tarde continuava linda e o Sol, o rei do Universo, como se pretendesse dar força e ânimo aos presentes com a sua matiz vermelho-alaranjado, entrando pelas vidraças de duas janelas, numa exposição telúrica rastejante, parecia confortar e beijar.

Atirei-me ao segundo jornal, certamente pela ansiedade, mesmo encostando a cabeça na parede não conseguia descansar

Eram cerca das 19h00, a sala já apresentava algumas cadeiras vazias. Foi então que entraram dois personagens meus conhecidos e se sentaram. Um deles, o homem, conhecia-o muito bem. Arrumava carros junto à Loja do Cidadão há uma dezena e meia de anos. Outrora profundamente apaixonado pelo álcool, enganado por uma amante e desenganado pela vida, com 66 anos de idade, é uma das poucas figuras típicas da Baixa ainda vivas. Há cerca de uma década contei a sua história de vida. Na altura era colaborador de um jornal com uma página semanal. Escrevi a história deste figurão e praticamente de todos os que deambularam pelas pedras da calçada. Muitos deles já não estão entre nós.

Ela, agora com cerca de 45 anos, era prostituta e sempre fez a sua vida difícil lá na zona. Apesar de nos cruzarmos imensas vezes, creio que nunca falei com ela. Sempre tive ideia de que era tóxico-dependente.

Não pareceram reconhecer-me, fosse por eu estar com máscara, ou não. Cada um, depois de ir à casa-de-banho, retirou o seu telemóvel e ligou-o na tomada, a recarregar a bateria.

Ele viria a emprestar o seu carregador a duas senhoras. Tinha vários num pequeno saco de apertar na cinta.

Passado pouco tempo entrou um terceiro figurante. Alto, com cerca de meio-século, limpo, bem-vestido e calçado com calça de ganga e sapatilhas e um impressionante blusão de cor beije, ostentando nas costas um enorme emblema da Académica. Tinha uma farta cabeleira com cabelo branco levemente a raiar as costas. Os seus modos eram suaves e finos. Não fosse uma pálpebra muito inchada e negra e diríamos que era Beethoven reencarnado.


VII


Já passava das 20h00. A sala, já com menos gente, estava mergulhada na penumbra. Pensei para comigo que deveria ir acender as luzes, mas, acalmando o meu ímpeto, dei por mim a ver o que acontecia. E aconteceu: uma mulher vestida com a farda da Repsol, certamente trabalhadora num posto abastecedor de combustível da reconhecida marca espanhola, levantou-se, acendeu as luzes e fechou as janelas, já que o frio invadia tudo em redor, não fosse os três aparelhos de ar condicionado contribuírem para um ambiente ameno e levemente aquecido.

Os três protagonistas, logo que apanharam um banco vazio só para si, estenderam-se ao comprido e fecharam os olhos. A mulher, com as pernas enroladas, ficou mesmo à minha frente. Durante horas, olhando para cada um deles à vez, fui fazendo uma espécie de catarse, libertação de sentimentos ou emoções reprimidas.

Olhando a mulher deitada no banco com as pernas enroladas em conchinha, relembrei a minha primeira vez, em 1976, em que fui obrigado a dormir num banco de Estação. Foi logo no meu primeiro dia do serviço militar. Era Janeiro. Tinha que assentar praça em Estremoz. Como era intimado a apresentar-me no quartel às 9h00, depois de me informar dos horários, na véspera, abalei de Coimbra de comboio. Só que não me disseram que o trem não ia além da estação de Portalegre, que distava cerca de uma dezena de quilómetros da cidade. Cheguei cerca das 22h00 e só tinha ligação para Estremoz no dia seguinte por volta das 8h00. Dinheiro para pagar a um táxi e pernoitar numa pensão da cidade não havia. A solução foi mesmo passar pelas brasas ali mesmo no banco. Passei tanto frio que, à distancia de 45 anos, ainda consigo sentir o tremor nos ossos.

Pensei que a vida é uma espécie de roleta russa. Em cada seis pessoas, por motivos vários, uma cai no charco e vai descambar.


VIII


O relógio marcava 23h00. A família cigana tinha partido há pouco. Tinha recebido a informação de que não valia a pena esperar pelo diagnóstico. Estava tudo muito atrasado. O melhor mesmo era irem para casa. E foram. O salão tinha agora 8 acompanhantes e os três sem-abrigo estendidos ao comprido.

As informações personalizadas estavam a terminar. A partir daí só telefonando para um número que deveria estar ali anunciado… mas não estava.

Eu já lera os dois semanários que me restavam. Tal como o diário, coloquei-os na mesinha pequena e à disposição de quem quisesse ler. Apenas duas pessoas folhearam o diário. Uma delas foi uma moça cigana. Pensei para mim que a imprensa em papel, acabando os velhos como eu, está mesmo condenada ao desaparecimento.

Liguei à minha amada. Depois de muito reclamar que era diabética, tinham-lhe dado uma copo de água e um pacote de leite. Disse também que a desorientação nas urgências era quase total. Uma senhora ao seu lado tinha recebido a medicação trocada. Para piorar, por que um mal nunca vem só, colocaram-lhe oxigénio… que era destinado à minha companheira. A outra azarada doente exclamou: “Estes gajos querem matar-me”.


IX


Eram cerca de duas horas da manhã. As ambulâncias eram agora mais espaçadas. Passavam duas por hora.

Como se obedecessem a um controle remoto, primeiro levantou-se o arrumador e comeu duas sandes embaladas previamente por si. Senti uma vontade enorme de lhe oferecer uma bebida. Sei lá porquê, não o fiz.

A seguir o Beethoven comeu uma sandes, bebeu um café e foi fumar um cigarro lá para fora.

Em seguida, a mulher de vida difícil levantou-se e foi à casa-de-banho – a propósito, esta parte essencial da higiene humana, apesar de não me ter apercebido de ver alguém a limpar, durante todo o tempo em que estive presente, quer a sanita, quer a bacia de lavatório mantiveram-se sempre limpas.

Tal como os companheiros, a sem-abrigo retirou duas sandes da sacola e comeu com ansiedade.

Eram 3h30 quando recebi um telefonema da minha mulher para me dizer que, provavelmente, ficaria internada e o melhor mesmo era ir embora para casa. E ficou mesmo.

Foram 13h00 à espera. Esta crónica não pretende ser uma via para a crítica fácil a um serviço essencial que, sabemos todos, é estruturante na sociedade portuguesa. Antes é um meio para atingir o pensamento. E todos, mas todos, precisamos muito de pensar o que queremos do SNS, Serviço Nacional de Saúde, para uma vida que, infelizmente, é cada vez mais curta.


Sem comentários: