sábado, 30 de janeiro de 2021

A MEALHADA EM CONTRA-CICLO COM O TRIBUNAL A REBOQUE

 





Esta semana fomos surpreendidos com a notícia da queixa-crime por parte de Rui Marqueiro, presidente da Câmara Municipal da Mealhada, contra Hugo Silva, vereador no executivo eleito pelo movimento Juntos pelo Concelho da Mealhada e líder da oposição.

Segundo o Jornal da Bairrada (JB), “Vereador da oposição referiu no ano passado, que “esfumaram-se dos cofres camarários quase três milhões de euros”. E agora responde à queixa-crime avançada pelo presidente da Câmara.”

Ainda citando o JB, a frase que gerou engulho era constitutiva do teor de uma carta enviada à Assembleia Municipal em Maio de 2020 e foi enquadrada seguinte texto:


Na economia sempre se recorreu a financiamentos, sempre se projectou investimento imediato antevendo receita futura, porque é no presente que a população retira partido da obra realizada deixando, normalmente, obra paga à geração seguinte e tirando partido da obra paga pela geração anterior.
Aqui aconteceu o oposto desde 2013, executou-se investimento em valores que baixaram aos 38% do orçamentado anualmente – numa média a 6 anos inferior a 50% – e ainda assim, neste mesmo período, esfumaram-se dos cofres municipais quase 3 milhões de euros em resultados negativos acumulados.
Ora, investir metade do que se orçamentou e ainda assim gastar mais 3 milhões do que se recebeu em 6 anos só poderia dar origem a um resultado desastroso.”


MAS HAVIA MESMO “NEXEXIDADE”?


Salvo melhor opinião, um leitor médio, apreciando todo o enquadramento da frase que causou polémica, facilmente apreende que todo o contexto envolve argumentos de luta política contra a gestão camarária e não na pessoa do autor da demanda por difamação/denúncia caluniosa. Naturalmente, daí, não resultando rebaixamento na honra e no bom nome do ofendido/queixoso, jamais poderá ser considerado insulto, uma vez que o enfoque é na organização política.

Por que motivo move Rui Marqueiro a acção judicial contra Hugo Silva quando a razão subjacente não convence?

É fácil de adivinhar. Fica barato, cria mal-estar enquanto durar a condição de arguido e dá sempre mácula no sombreamento político, sobretudo, nos munícipes menos informados.

Fica barato porque porque a autarquia, na qualidade de elemento da Fazenda Pública, está isenta de custas. Já o mesmo não se passa com o o visado Hugo Silva.

Cria mal-estar porque, numa sociedade conservadora onde, por um lado, o tribunal é considerado uma espécie de purgatório onde vão parar malfeitores, por outro, detém um peso institucional demasiado gravoso e elevado, a condição de arguido constitui um anátema, um opróbrio, uma vergonha social para uma pessoa de bem.

Mas, faz sentido a participação? Do ponto de vista jurídico, na qualidade de cidadão, é óbvio, é um direito que lhe assiste. Acontece que, dado o palco onde as palavras são proferidas e o enquadramento da “ofensa”, quem se queixa é o presidente da Câmara Municipal e não o sujeito. Salvo melhor opinião, logo a sua participação deve ser julgada improcedente.

Se a prova não fosse substantiva, basta lembrar as recomendações do Internacional Press Institute e o Observatório de Imprensa que há muito clamam contra a revogação do artigo 184º do Código Penal para crimes de difamação que envolvem funcionários públicos.

Atente-se também nas mais de vinte condenações de Portugal no TEDH, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em que estão em causa difamação/denúncia caluniosa, injúria, ofensa a pessoa falecida. Há muito que esta estrutura internacional de direito penal prega para que Portugal trate estas premissas de liberdade de expressão com mais ligeireza e as transforme, por exemplo, em contra-ordenação.

A meu ver, e aceito contraditório, o facto da Mealhada (e o concelho) andar em contra-ciclo talvez não seja completa surpresa. Afinal é uma cidade recente – desde 2003 – implantada no meio do país anquilosado, cristalizado no tempo, e com uma comunidade pouco interessada em questões políticas.

Para piorar, estes comportamentos fazem doutrina. Quando o tribunal é chamado para dirimir pequenos conflitos, que deviam ser civilizadamente resolvidos entre as partes, com recurso a denúncia anónima está tudo dito.


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