terça-feira, 28 de agosto de 2012

UM COMENTÁRIO RECEBIDO SOBRE...

(Imagem da Web)


Pedro Galveias deixou um novo comentário na sua mensagem "A ASCENSÃO DO MEDO":


Sr. Luís,

Tenho uma loja na Baixa e uma filha bebé com quem passeio frequentemente nas ruas da mesma. Ora, se por um acaso eu estivesse presente nesta situação, seria para mim ou para outra pessoa nas mesmas condições muito complicado intervir sabendo que este tipo de pessoas praticam uma violência gratuita e sempre desmesurada. Compreendo a reacção de medo das pessoas. Ainda para mais quando quem nos deve proteger e fazer algo, demora 15 minutos a chegar estando mesmo ali ao lado. (tal como é incompreensível os assaltos à Pétala, à perfumaria do Mercado e outros). Sim, por vezes tenho vontade de fazer justiça pelas próprias mãos, criar milícias populares e actuar. Mas sabe, depois a polícia já não demora 15 minutos para me vir buscar, vem logo! Depois ainda temos aqueles comerciantes que, preocupados com os seus bens, têm que pagar 1000€ por noite por 2 agentes da polícia, se o edifício onde têm a sua loja estiver em obras e com andaimes montados e solicitarem a vigilância do mesmo.
O problema da Baixa tem que ser resolvido de outra forma, como tantas vezes já referiu. E com isto não meto no mesmo saco todos os agentes da polícia, pois alguns preocupam-se e fazem o que podem...
Nunca ignorei os "personagens" da Baixa de Coimbra que o Sr. Luís tão bem retrata (o saudoso "Aspirante", o Senhor Pino, que vende a CAIS, e tantos outros...) Mas causa-me alguma revolta os marginais que passam o dia em frente à Câmara Municipal a vender droga debaixo do nariz das autoridades e a elaborar os assaltos que vão fazer. As autoridades conhecem-nos, sabem quem são... e todos os dias lá estão!
Eu ainda acredito na Baixa de Coimbra.


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NOTA DO EDITOR

 Começo por lhe agradecer o seu comentário sincero. Gostei muito da forma como se expressa. A seguir vou escrever que, entre outras, há duas premissas que são transversais à humanidade. Ninguém está livre delas: o receio e a dívida. Quanto ao receio, todos temos medo de algo ou de alguma coisa. Quanto à dívida, todos somos devedores de algo, a alguém terreno, nem que seja pelo simples reconhecimento de um pequeno gesto altruísta, ou, se for crente, a uma entidade transcendental, a Deus, por exemplo.
Quando escrevo em título “A ascensão do medo”, pretendo apenas alertar para o facto de não nos deixarmos dominar por ele. Não pense que ao fazê-lo me julgo superior. Sou um “cagarola” como outro qualquer. Porém, como sabe, até pelo facto de dar a cara escrevendo o que penso implica algumas vezes introspecção, sobretudo, tendo em conta a consequência futura. Tantas vezes penso se valerá a pena continuar. Mas tenho dois motivos fortes. O primeiro é que gosto de escrever –e sem este vício é difícil  passar. O segundo é que –também outro vício- gosto de intervir. Gosto de dar opinião. Estas são verdadeiramente as razões, mas ainda lhe vou acrescentar mais um ponto: não resisto a contar uma história –se você costuma ler este blogue, saberá que estou sempre pronto a contar qualquer coisa que se passou comigo ao longo da minha vida. Aí vai algo que nunca aqui escrevi:

                                                      I

Em 1982, com 25 anos, estabeleci-me por conta própria com um café na Alta da cidade. Até aí, eu fora sempre empregado e peguei no negócio com dinheiro emprestado. Caí lá, na zona, por puro acaso. Passava lá de vez em quando, mas não conhecia nada do que por lá acontecia. Antes de abrir, porque o estabelecimento estava mesmo miserável, com a ajuda de um meu cunhado, pintei, limpei, arranjei o que pude sem gastar muito dinheiro. Lembro-me que, enquanto andava lá nas limpezas, um sujeito assomou à porta e disse: “foi você que ficou com isto? Não lhe dou um mês para ir embora. Ninguém aguenta este café. É impossível ter mão na escumalha que o frequenta”. Eu fiquei a olhar para o homem e, recordo, apenas retorqui: vamos ver! Outra vez, outro disse-me: “olhe que isto aqui é muito difícil de aguentar. Há aqui um grupo de cerca de uma dúzia de indivíduos, são eles que mandam e impõem a sua lei. Nunca chame a polícia para nada!”

                                                       II

Logo no primeiro dia em que abri, cerca das 23h00, com a sala cheia, e onde estavam pessoas da minha família e a do meu cunhado, entrou lá um indivíduo e, como touro enraivecido, virou tudo. Eu, que nunca tinha andado à pancada, magro e sem grande estatura física, fiquei aparvalhado a olhar para o que estava acontecer. Só via e ouvia os clientes a gritarem espavoridos e as mesas todas tombadas e com a louça quebrada e espalhada pelo chão. Logo nesse dia chamei a polícia que o identificou. Nos dias subsequentes era sempre o mesmo. Logo que o avistava a entrar acompanhado dos outros as minhas pernas tremiam como varas verdes. Há distância de trinta anos consigo sentir a sensação. Comecei por tentar chamá-lo à atenção para o que ele estava a fazer, mas o resultado era o mesmo. Quando falava comigo concordava, à noite, juntamente com outros, quebrava copos e o mais que calhava. Então tive de decidir o que fazer. Ou avançava para a luta e salvava o que tinha ou, tal como os anteriores donos, tinha de abandonar. 
A primeira vez que me envolvi à pancada com ele partiu-me o nariz –ainda conservo a marca mesmo no meio da cana. Aos poucos, com a ajuda da PSP porque sempre que tinha problemas esta força ia lá, eu fazia queixa, e levava aqueles energúmenos a tribunal, depois de muita pancadaria e muitos vidros partidos, consegui pô-los a todos fora dali. Não se pense que foi fácil. Cheguei a contratar um indivíduo para fazer segurança mas o problema persistia para pior. Durante um ano inteiro foi assim. Tive uma arma apontada à cabeça; tive uma faca encostada ao pescoço; andei ao murro sei lá com quem e considero que muitas vezes fui injusto com quem não merecia. Fui a 13 julgamentos em que era o ofendido. Ao fim de pouco mais de um ano tinha a casa quase limpa. Mas, por parte desta escumalha, tinha a cabeça a prémio e muitos inimigos. Chegaram a partir-me a montra com um calhau envolvido numa mensagem de ameaça à integridade física. Lembro-me de, diariamente, sair a altas horas da noite do café e esperar levar um “enxerto” para nunca mais me levantar. Mas eu armava-me em forte. Ninguém sabia como as minhas pernas tremiam. Só eu sentia aquele medo que me atrofiava a alma. Mas tinha noção de que estava a caminhar no bom sentido. Aliás, não tinha mesmo outra hipótese do que ir em frente. Se recuasse nunca conseguiria pagar a quem devia. Por outro lado, sempre acreditei que todos nós só temos uma oportunidade na vida. Aquela era a minha. Se a perdesse não iria ter outra igual. Vivia atemorizado com o que pudesse acontecer a qualquer momento. Eu estava todo o dia no café sem arredar pé e até à noite, como se esperasse que, se saísse, a guerra iria rebentar a qualquer momento. Durante o dia só me afastava para ir buscar os meus filhos à escola e rapidamente voltava para lá. Pressentia que, mais tarde ou mais cedo, os distúrbios iriam recomeçar. Sentia que o grupo esperava vingança. Isto numa altura em que eu não podia falhar. Para além disso, os anteriores cedentes, deixaram a firma na falência e eu andava a fazer acordos com todos os credores para conseguir levar o barco a bom porto.

                                                    III

 Passado cerca de um ano e meio, recordo bem, por volta das 18h00, fui levar a minha filha a casa e demorei cerca de 45 minutos. Quando retornei ao estabelecimento encontrei o café todo destruído, mesas, cadeiras, balcões, louça partida, e -na altura tinha três empregados- um funcionário com uma orelha deitada abaixo. Tinham sido três irmãos muito famosos na cidade pelos seus desmandos de violência e que eu deixara de servir –um deles tinha-me apontado uma faca ao pescoço. A PSP prendeu-os e o caso foi remetido para inquérito.
Na semana seguinte, com a ajuda de um amigo polícia, tratei de pedir uma licença de uso e porte de arma. Passado pouco tempo comprei a pistola e aguardei. Dizia-me a minha intuição que estes três irmãos iriam voltar para fazerem o mesmo. Passado mais ou menos um ano, cerca da meia-noite de um qualquer dia, apareceram os três para repetirem a proeza. Começaram por pedir para serem servidos. Eu neguei. Fui buscar a arma ao escritório, coloquei uma bala na câmara, pu-la no bolso e fui para o balcão. Um deles, ameaçador, perguntou: “serves-nos ou não?”. Eu disse não. Então ele pegou numa cadeira e elevou-a no ar com intenção de a arremessar contra uma mesa. Puxei pela 6,35 e, visando os três, desafiando, interpelei: parte se fores capaz! Se o fizeres ficas aí. Então, numa experiência que espero que nunca mais se repita, aconteceu uma coisa extraordinária. Quando ele viu a pistola apontada ficou lívido. Foi como se estivesse perante uma cascavel. Meio atarantado, largou a cadeira e, sem conseguir controlar os nervos, como estava junto de um empregado colocou-se atrás dele e, servindo-se do homem como escudo, foi até à porta e desapareceu. Eu, talvez pela aparente posição de superioridade concedida pela arma, estranhamente, estava calmo. Os outros dois, visados pela pistola, aguardaram quietos que viesse a PSP. Irrompeu a polícia e, depois de um dos agentes me ter descarregado a arma e contemporizar muitas vezes “tenha calma”, “tenha calma!”, levaram-nos lá para fora para identificar. Lá dentro, fiquei a pensar: desta vez é que estou mesmo frito. É desta que estes três meliantes me vão matar. 

                                                IV

 Agora veja-se o lado comportamental e antropológico dos humanos: estes fulanos nunca mais me chatearam. Mais, quando passavam por mim na rua, evitando fitar-me, colocavam o olhar no chão. Dois deles ainda hoje andam por aqui pela Baixa. Nunca mais tivemos a mínima provocação. Eles fazem de conta que aquilo nunca aconteceu e eu, da mesma forma, igualmente. Até já falámos, inclusivamente.
Eu resumo, poderemos interrogar: e se um deles tivesse mesmo começado a partir tudo? O que teria acontecido? Eu teria disparado? Não teria? E se o tivesse feito? Essa é uma questão que não tenho resposta, mas dá para pensar como a fronteira entre o livre-arbítrio, a liberdade e a prisão é uma linha ténue e imperceptível. 
Penso que foi a forma aparentemente segura como os enfrentei que me levou a vencer. Afinal, como já alguém escreveu, a vida não é mais do que um grande teatro onde cada um  de nós representa o papel que lhe está atribuído pelo destino. Ali, naquela noite, eu representei um acto e correu muito bem. Mas poderia ter corrido muito mal sobretudo para mim.
Estive na Alta, com o estabelecimento, 12 anos. Lá ganhei a minha vida, a minha independência financeira e lá atravessei a ponte entre a miséria e o remedeio. Por lá deixei muitos amigos e que ainda hoje me acompanham e recordamos com saudade. Tive sorte, é claro. Não tenho a mínima dúvida! Mas, afinal, o que é sorte senão uma sequência lógica de acontecimentos encadeados uns nos outros?!
Em suma, para salvar o que é nosso, temos mesmo de vencer o medo. Dá para ver que quando a necessidade obriga, e quando está em causa a nossa vida, qualquer pacato cidadão se pode transformar em homicida. Creio que, nessa altura, nesta sucessão de factos foi o que aconteceu comigo.

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