As seis badaladas tinham batido há pouco no campanário da igreja da Mealhada, neste 16 de Setembro. A tarde decorria calma e serena. O Sol lá longe, ainda com uma temperatura elevada para um começo de Outono, como a ajeitar-se para se acomodar parecia gozar a modorra do tempo.
“Ti Manel”, aposentado, freguês, munícipe, e acima de tudo cidadão pagador, residente no Travasso, povoação paredes-meias com a capital do bom leitão, preparava-se para transpor a porta envidraçada da Escola Profissional Vasconcelos Lebre, na Mealhada. Com uma leira na zona mais fértil do lugar da freguesia da Vacariça, é daquele horto, herdado de seus pais, que “Ti Manel”, com esforço diário inscrito nas cruzes em bicos de papagaio, retira o seu complemento da reforma miserável. É dali que, apanhando desde os legumes, até às batatas, passando pela fruta, provém praticamente todo o sustento para si e para a sua “Maria”.
Tudo aconteceu há cerca de três meses quando em conversa com o seu vizinho “Anacleto” veio a saber que a denominada Linha da Concordância – um trajecto de pouco mais de três quilómetros – ia tomar-lhe o segundo amor da sua existência – o primeiro é a sua “Maria” -, o seu jardim do Éden. Num primeiro impacto, foi como se apanhasse um brutal murro no estômago. Não sei se vossemecê está a ver. É como se o mundo caísse em cima da nossa cabeça.
Como é possível que esta má notícia não transpirasse mais cedo por entre uma cavadela de enxada, uma sementeira e uma regadela? É certo que, talvez por a vista já lhe faltar, o homem não lê jornais, e muito menos essa coisa dos computadores… ai! Como é que chama? Isso. Isso mesmo: Internet. “Atão” agora é que ia navegar para essa coisa? Porra! Porra! Burro velho não aprende línguas. Em boa verdade, à noite, até vê um coisito do “Jornal da Noite”, da SIC – pelo menos até as pestanas lhe pesarem – mas não se lembra nunca do seu Travasso ser notícia na televisão. Também não se lembra da sua Junta de Freguesia ter promovido uma sessão de esclarecimento para debater o assunto. Por quê tanto secretismo, interrogava o agricultor numa noite de contar carneiros. “Atão” isto faz-se?
Antes de penetrar no antigo estabelecimento municipal de ensino, “Ti Manel” respirou fundo. Afinal, este era o seu baptismo de fogo. Era a primeira vez que ia assistir a uma Assembleia Municipal. Foi então que, sem se fazer anunciado, um “galaró”, erguendo a crista, cantou alto e forte nas redondezas.
Como se fosse pouco o símbolo do azar, um gato preto, esbaforido como se levasse fogo no rabo, passou ao seu lado. “Mau Maria”, isto tem tudo para correr mal. Fosca-se! Abrenúncio! Vade rectro, Satanás! Pensou “Ti Manel” em solilóquio com seus botões. Enfiou a “focinheira” por causa do vírus, entrou e foi absorvido pela luz artificial do interior da escola.
UM DEBATE (DES)INTERESSANTE COM O PÚBLICO
A sala onde ia haver o encontro era como um anfiteatro, muitas cadeiras inclinadas para a frente e, num plano superior, uma espécie de palco. Em cima deste pódio, cerca de uma dúzia de pessoas. Entre vereadores estava o presidente da Câmara, Rui Marqueiro, e a presidente da mesa da Assembleia Municipal, Daniela Salgado. Excepto esta senhora, certamente a ver as cotações da bolsa, todos estavam agarrados ao telemóvel.
Cerca das 18h30 deu-se início à Ordem de Trabalhos, com a abertura do Período destinado à Intervenção do Público. Numa atitude condescendente, justa e compreensível, em que o Regimento da Assembleia preconiza trinta minutos, a presidente da mesa permitiu que cerca de dezena e meia de munícipes, tomando a palavra, dissessem de sua justiça durante mais de uma hora. Todos foram contra a passagem da linha por terrenos do Travasso.
Com um ar mordaz, corrosivo e displicente, o presidente da edilidade, sempre absorvido pela atenção do telemóvel, parecendo não estar ali, nem ouvir o que era dito pelo público, ia respondendo a conta-gotas. Através das palavras, mostrou-se resignado e vencido pelo sistema político vigente. Por várias vezes repetiu: “o que quer que eu faça? Eu não posso fazer nada! Não querem a linha? Rejeitem-na! A linha é de interesse nacional. Se todos seguissem o vosso exemplo nunca haveria comboios em Portugal.”
Noutras interpelações, respondeu: “Se me perguntarem sobre se a Infraestuturas de Portugal (IP), vai cumprir? Se tenho a certeza? Honestamente não! Estou aqui porque acredito na boa-fé da IP. Acho que desta vez eles terão muita dificuldade em não cumprir”, enfatizou Marqueiro.
A uma munícipe do Travasso, que acusou o executivo de nada fazer na sua terra, Marqueiro respondeu: “E senhora, fez lá alguma coisa? Fez? Então estamos iguais!” - como se as suas responsabilidades institucionais fossem iguais à da cidadã.
FALA DEPUTADO
O primeiro deputado a intervir foi um eleito do PCP/PEV, para fazer um requerimento à mesa. Com base em que era preciso levar este assunto às pessoas, tratava-se de uma proposta para aprovação do adiamento da Assembleia Municipal para outra data posterior à da Pampilhosa e do Travasso, que irão ocorrer no próximo 18 de Setembro.
Alegadamente, e pelo que foi dito, esta sessão foi marcada a pedido de Marqueiro, por ter de se ausentar, sabendo da existência das duas assembleias de freguesia a ocorrer dois dias depois. Embora a explicação devesse obrigatoriamente ter sido dada pelo presidente da autarquia, numa troca de papéis que não se entendeu muito bem, foi a chefe do hemiciclo que, dando como certa a ausência do edil, tomou a sua defesa e esclareceu o deputado comunista. Relembra-se que a Assembleia Municipal é o órgão fiscalizador do executivo, e não o contrário.
Feita a votação do requerimento apresentado à mesa pelo deputado do PCP, foi chumbada pelos seus pares. De salientar que Claudemiro Semedo, presidente da Junta de Freguesia de Luso, votou a favor do adiamento.
E PROSSEGUE A MARATONA
A seguir falou a deputada eleita pelo Bloco de Esquerda. Numa prosa clara, eloquente e convicta, deu a entender e foi ao fundo da questão, afirmou que Rui Marqueiro era autoritário. Disse também que, ao não convidar outros vereadores para ir a Lisboa à reunião com a IP, o autarca centralizou o problema. Que o líder do executivo agia como se fosse o “dono disto tudo”.
Disse também que a presidente da mesa da Assembleia Municipal, à revelia do plenário, permitiu que, em 17 de Agosto, o ponto da Ordem de Trabalhos fosse retirado sem votação.
Em resposta, Daniela Salgado, presidente da mesa, explicou que, como a reunião tinha sido pedida por Marqueiro, logo, por direito, o requerente poderia anular os pontos que entendesse.
Pergunta-se assim com assim: com esta não-inscrição, que foi e deixou de ser, onde fica o princípio da confiança nos representantes e nas instituições?
E MAIS AINDA…
Uma deputada da Coligação Juntos pelo Concelho da Mealhada reiterou a falta de diálogo entre eleitos e eleitores. Mais: que esta obra não traz emprego, não traz empresas. Pelo contrário, traz destruição à zona fértil do Travasso.
Em resposta, Marqueiro afirmou: “olhe é o azar, o comboio passar lá!”
E AINDA…
Em resposta a outro deputado, o presidente da edilidade mealhadense explicou que a Declaração de Interesse Municipal, conforme a lei, baseia-se no facto da obra se desenrolar em terrenos da Rede Ecológica Nacional.
Continuou Marqueiro, por outro lado, a Declaração de Impacto Ambiental é desnecessária por parte da APA, Agência Portuguesa do Ambiente, por ser inferior a cinco quilómetros (Regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional -CCDRC).
E FALOU A PRESIDENTE DE JUNTA DE FREGUESIA DA PAMPILHOSA
Falou a presidente da Junta de Freguesia de Pampilhosa: “as juntas de freguesia da Pampilhosa e da Vacariça apenas estiveram em três momentos com a IP.
O que ganha a nossa população com os adiamentos?
A marcação da nossa Assembleia de Freguesia foi feita antes da Assembleia Municipal. A Junta teve o cuidado de perguntar à Câmara a data da Assembleia Municipal e nada foi dito.
Este não é o tempo para adiar grandes obras!”
E A SEGUIR O PRESIDENTE DA JUNTA DE FREGUESIA DE VACARIÇA
O presidente da Junta de Vacariça, em resumo, disse que estava magoado com o povo do Travasso, com o porquê das suas gentes não se ter colado à Junta. “Ninguém procurou saber o que se passava”.
“Reconheço o transtorno com o prejuízo que vão sofrer. Fiquei satisfeito em não ser demolida nenhuma casa.
Vamos fazer fé nas palavras daqueles senhores da IP”, enfatizou o edil.
E OUTRA DEPUTADA
“Este projecto é absolutamente fundamental para os tratados de Kyoto e de Paris. Os interesses dos cidadãos vão ser lesados, mas vão ser resolvidos em processos expropriativos.”
E FOI A VOTAÇÃO
Com a presidente da mesa da Assembleia a dar início à votação sobre a Linha da Concordância, em que irão passar cerca de sete comboios de cerca de 750 metros e a uma velocidade média de 180 quilómetros por hora, deu-se a votação:
8 votos contra, duas abstenções e 15 votos a favor.
Na mesa da Assembleia alguém suspirou fundo. Apesar de, aparentemente, estar em fim de vida autárquica, mesmo assim, ainda irá ver o comboio apitar duas vezes. Uma pelos lesados, que sem voz e sem representação política, vão constituir as fundações da nova linha. Outra pelo desempenho de alguns políticos locais que vão ficar na história pelos piores motivos.
PORRA! NÃO HAVIA “NEXEXIDADE”
Numa peça tão bem encenada, caiu mal a dramatização, ou melhor, a crispação travada entre Daniela Salgado, a presidente da Mesa da Assembleia Municipal, e Isabel Santiago, deputada da Coligação “Juntos pelo Concelho da Mealhada”. No caso, a deputada é proprietária de um terreno afectado pelas obras da linha, no Travasso. Acontece que, pela legislação, uma lei que é iníqua, porque o legislador não pode prever tudo – e quando assim acontece deve prevalecer o bom-senso, aliás aflorado várias vezes pela chefe da Assembleia – a deputada, se estiver em causa uma votação, por incompatibilidade, não pode participar no sufrágio. Se estiver em causa defender os seus direitos de cidadã, como é o caso, também não pode por ser eleita. Salvo melhor opinião, claramente está em causa a sonegação de direitos constitucionais.
Ora, o que fez a deputada? Pediu a substituição e pretendeu intervir na qualidade de munícipe lesada. Com uma rispidez digna de nota, a mostrar que a dissensão entre as duas mulheres fortes já é a resvalar para a pessoalidade, a maestrina da Assembleia não esteve bem. Tanto falou em bom-senso ao longo de mais de quatro horas, mas, quando o deveria ter empregado, falhou. Que mal trazia à questão em análise se a deputada despejasse o que lhe ia na alma? Seria a sua intervenção capaz de virar o sentido de voto? Nem pensar! Em especulação, o que está em causa é o medo e a necessidade de achincalhar.
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