quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

UM ELDORADO QUE NOS DEIXA NO DESERTO




 Uma das mais importantes lojas comerciais da cidade vai encerrar no fim do mês. Falar da morte do Eldorado não é fácil, sobretudo para mim, que o conheci bem. Esta catedral de moda, nas décadas de 1970 e 80, não tenho dúvida, foi a mais importante na Baixa da cidade. Foi qualquer coisa de extraordinário, que simples palavras, mesmo rebuscadas, não conseguem mostrar a quem lê.
Nasceu, no ínicio de 1970, ao fundo da Rua Eduardo Coelho, próximo das também já desaparecidas Galerias Coimbra. O seu criador foi o “Manel” Ribeiro, o nosso ideólogo e filósofo existencialista, que, felizmente, ainda hoje nos brinda com teorias nestas ruas estreitas. Salvo erro, logo a seguir a Abril de 1974, sofreu um grande incêndio que consumiu completamente o seu recheio. Todo o saber do “Manel”, assim como toda a clientela, pela força das circunstâncias, veio a deslocalizar-se então para a Rua Adelino Veiga, para uma loja de vinhos e rolhas que ali existia -o Fausto “Rolhas”, pai de Fausto Correia, e já ambos desaparecidos. Para quem quiser exercitar a memória, havia um grande portão de madeira, descíamos uma pequena rampa acompanhada por umas caixas cheias de rolhas cobertas com rede, e ao fundo havia um grande balcão de madeira com várias pipas.
Juntamente com um sócio e com a gigantesca força anímica do “Manel”, fizeram obras e depressa aquele espaço se transformou num imenso santuário de peregrinação de tendências vestuárias. É indescritível contar o que era o Eldorado nesse tempo. Contrariamente a outros colegas comerciantes do país, que iam beber a moda a outras cidades europeias, em Coimbra quem lançava o que se ia usar durante o ano na urbe era o Eldorado. Diariamente as suas montras, com os artigos colocados de forma estratégica, eram visionadas por centenas, senão milhares de pessoas.
Eram famosas as suas gangas, com tudo o que era marca de prestígio, e os fatos sem forro para homem. A colecção de camisas da “Vitor Emanuel”, da marca Califa, eram ali apresentadas pela primeira vez ao público. Camisas Lacoste, que nessa época custavam uma fortuna, ali, havia às centenas. As existências daquela casa, pela quantidade, eram assustadoras. Entrar para comprar, mesmo com um exército de funcionários, já se sabia que iria esperar uma boa hora.
O sucesso do Eldorado foi tão grande que, provavelmente, por esse facto e em acasos imprevisíveis do destino, ajudou a transformar completamente a vida pessoal e profissional do meu amigo “Manel” Ribeiro. Depois de outras modificações, entrou em choque com o sócio, desfizeram a sociedade e durante uns tempos, o antigo parceiro do “Manel” continuou. Porém, como comboio sem máquina, passados tempos, por alturas de 1990, foi vendido para uns comerciantes indianos, que detinham várias lojas em Lisboa e nos Açores.
A fama e o “espírito” do Eldorado ficaram muito bem entregues. Sob a gerência de Asslam, um árabe naturalizado português e mais conimbricense de alma do que muitos nascidos aqui, esta grande casa histórica continuou a rolar e a dar cartas na Rua Adelino Veiga. Na rua do poeta trabalhador só uma grande marca, com duas lojas, lhe fazia sombra: as Modas Veiga.
Com a abertura do Continente e da Macro em 1993 estas casas sofreram os primeiros embates, que lhes causaram um rombo no casco. Com o oceano do pronto-a-vestir a ser continuamente invadido por grandes cargueiros transatlânticos, chamados de grandes superfícies comerciais, a área de pesca de clientela foi-se tornando mais diminuta e, para piorar, o barco, tal como outros na mesma área, foi metendo cada vez mais água.
Com o encerramento, primeiro, das Modas Veiga, a rua foi ficando mais deserta. A seguir foi uma das lojas Fetal, depois outras mais pequenas, depois o Saul Morgado, a seguir outra grande área da Fetal, e aquela artéria, outrora um grande canal a ligar a Estação Nova e as ruas da calçada, foi-se tornando um mar morto. Sem movimento de gente a pisar as pedras calcárias de granito e basalto, esta outrora movimentada artéria, tornou-se via de ninguém. Como sem vida não há pessoas e sem pessoas não há negócio, não resta outra solução do que encerrar o Eldorado no fim do mês. Escusado será dizer que a Baixa, com esta perda, ficará muito mais vazia de história e incomensuravelmente empobrecida.
Hoje, à hora do almoço, encontrei um Asslam -o gerente do Eldorado- acabrunhado, com os olhos sem brilho e embaciados de solidão. Com dificuldade, como se as palavras saissem lentamente, com um enorme peso, e embrulhadas em lágrimas de dor, foi-me dizendo: “é triste ver acabar assim o “meu” Eldorado! Você não consegue imaginar o meu sofrimento. Estou aqui há 22 anos. Lembro-me dos primeiros tempos. Recordo a transferência progressiva dos meus clientes para as grandes áreas comerciais e a minha impotência em poder fazer alguma coisa para travar esse êxodo. Sobretudo para que não esquecessem a minha casa. É frustante ver o fim deste meu segundo lar -e as órbitas parecem quererem inundar-se, apesar do grande esforço em mantê-las secas. É revoltante verificar que hoje, que começámos com a liquidação total e com descontos que vão até aos 70 por cento, vi aqui clientes que já não nos visitavam há mais de uma década. Não sei se consegue entender a minha mágoa, mas é como se agora, que estamos no fim, viessem como abutres em busca da última refeição. É inexplicável o que sinto perante esta morte comercial. Tenho 44 anos, não sou velho, mas estou preocupado. Tenho uma filha para criar e uma esposa para amparar. O que vai ser de nós, senhor Luís?”


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