quinta-feira, 30 de março de 2017

ESTRELA POR UMA HORA







Num amável convite pela organização das “Jornadas Transdisciplinares”, durante cerca de uma hora, dissertei hoje na Faculdade de Psicologia de Coimbra sobre o tema “Rostos Nossos (Des)conhecidos”. Numa resenha histórica, englobei a Coimbra de antanho e a Coimbra de hoje.
Deixo aqui o texto escrito exclusivamente para o efeito:


ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS - DISSERTAÇÃO

A história das cidades remonta há milhares de anos. As primeiras terão surgido na Mesopotâmia, ao longo do rio Nilo, e sempre resultante da junção de pequenos lugares habitados. O crescimento de grandes impérios antigos e medievais levou ao aparecimento de grandes urbes como, por exemplo, Roma.
Durante a Idade Média, na Europa, uma cidade era tanto uma entidade política-administrativa como um conjunto de casario agregado. Com um quadro legislativo próprio, era o senhor feudal que impunha a sua lei. Com a queda do feudalismo, pela crise gerada nas relações entre senhores e servos, pela contínua imposição de obrigações, tributos e necessidade de permanecerem agarrados à terra, dos primeiros sobre os últimos, as cidades multiplicaram-se. Os camponeses, com o contingente populacional a crescer a par com as actividades artesanais e comerciais, recorrendo aos seus próprios meios de fuga para a liberdade, começaram a abandonar os feudos e a refugiar-se na periferia da cidade muralhada, onde, com a criação de feiras e mercados, permitia um melhor escoamento de produtos e, sobretudo, fugir ao absoluto controlo da entidade administrativa. Com o advento do Capitalismo e início da Globalização, com as viagens marítimas de circum-navegação, estavam criadas as condições para o desenvolvimento. Com a formação das associações de classe, “fraternidades”, e as “corporações”, que agregavam os seus membros em torno de estatutos comuns, bandeiras e santos padroeiros, surgiam as oficinas, em que a loja era o ponto de venda do produto aí criado, com os seus mestres, instaladas em ruas com ofício designado.
Em todas estas cidades, grandes ou pequenas, calcorreando as ruas, havia um quadro social comum que as unia: os loucos, os pedintes e a humilde gente do povo.
Os primeiros, os loucos, são seres com um elevado grau de demência que vagueiam na comunidade praticamente com total impunidade. Chegando a ser agressivos para o meio em que se inserem. Entre sussurros de espasmo verbal, nessa altura, algumas vezes pediam uma côdea ou uma moeda. No entanto, apesar da tensão, tal como hoje, assistia-se a uma desvalorização para os seus actos tresloucados.
Os segundos, os pedintes, ao longo da história, são as sombras pardas da colectividade. Tal como hoje, umas vezes mendigam por necessidade, outras por vício de obter um rendimento fácil e sem esforço.
Os terceiros, a gente humilde do povo, são a matriz identitária de um lugar habitado. Esforçados trabalhadores divididos em várias áreas, encontram no labor o único meio honesto de sobreviverem.
Com o aparecimento da Revolução Industrial, em finais do século XVIII, as migrações aumentaram do campo para a a cidade e estas desenvolveram-se cada vez mais junto de rios e em torno do litoral. Com o Estado-nação a surgir um século antes pelas ideias iluministas e a serem levadas à prática pela Revolução Francesa, estavam criadas todas as condições para a transformação da vida em sociedade urbana. Com a divisão do trabalho, com o burguês/cidadão a ser classificado de acordo com a sua função, se, por um lado, com este processo de mudança económica, pela primeira vez até aí, o padrão de vida das pessoas comuns começou a melhorar, por outro, aumentaram as desigualdades sociais e, consequentemente, cresceram os loucos, os pedintes e a gente humilde do povo. Sem grande rigor histórico e científico, será ao longo do século XIX que surge uma nova classe: os inadaptados. Embora bem-sucedidos na vida, a meio do percurso vieram a tergiversar, abandonam o rumo que tudo parecia indicar traçado e, muitas vezes ancorados em adicções, transformam-se em vidas errantes, em sombras de nós. Será porventura uma classe excedentária dos novos tempos, a limalha societária que transborda de uma sociedade que não tem complacência com os desiguais, os não-formatados, os não-alinhados nas suas convenções.

E EM COIMBRA?

Ao longo de todo o século XIX, retratados em publicações chegadas até nós, entre loucos, pedintes, gente humilde do povo e inadaptados, foram muitos os personagens típicos na cidade de Coimbra. Nos últimos, nos inadaptados, muitos deles foram também gerados no meio estudantil.
Ao longo do pretérito século XX proliferaram os “cromos”, designação atribuída aos diferentes entre iguais, que pela sua excentricidade deixaram forte marca na cidade. Embora se repartissem entre todas as categorias, foram alguns loucos e pedintes que atingiram notoriedade lendária, em projecção nacional e além-fronteiras, precisamente por estarem fortemente ligados aos usos e costumes dos estudantes universitários. Para ser mais exemplificativo, falo exactamente de dois personagens, que conheci bem: O “Tatonas”, de nome de registo apenas tratado como Daniel e a restante alcunha como apêndice, e o “Taxeira”, registado civilmente como Manuel dos Reis Carvalheira, que tem o seu nome gravado para a posteridade na toponímia coimbrã.
Neste século XXI, pela crise económica instalada, que pela falta de meios estatais, tantas vezes desviados para fins malditos, tem vindo a gerar instabilidade social, é provável que hoje em Coimbra o leque de abrangência seja muito maior do que se pensa, quer na demência, quer na mendicidade, quer nos classificados como inadaptados. O povo, quer com restrições financeiras e apertos na bolsa e no coração ou não, continua humilde e boa gente. Talvez por isto, a Dona Adelaide, uma das retratadas na exposição, baptizada por mim como a “última tremoceira”, com a vetusta idade de 93 anos, continue a trabalhar diariamente na Rua Visconde da Luz. Se auferisse uma reforma digna que lhe permitisse gozar uma legítima velhice na paz dos deuses, certamente, não continuaria a laborar exposta ao frio e ao calor da cidade.

O OLHAR DE QUEM PASSA SOBRE QUEM ESTÁ

Pela minha experiência, constata-se que estes “disfuncionais”, enquanto são vivos, aparentemente, não desencadeiam exteriorizações de extraordinário afecto. Os transeuntes, passando ao seu lado, ignoram-nos completamente. Parecem fazer deles apenas mais uma personagem que deambula pelas ruas estreitas e largas do casco urbano de uma cidade velha. No entanto, quando morrem -quase sempre abandonados e sozinhos- provocam um estertor de sofrimento colectivo. As manifestações de dor são pungentes como se tratasse de uma alta individualidade.
Especulando, dá para pensar que durante a vida repetitiva e vazia destas pessoas, enquanto circularam por entre nós, por que nunca lhes tivéssemos ligado muito nem dado qualquer importância, perante o facto consumado do seu desaparecimento, subitamente somos acometidos de um certo complexo de culpa, como se, pela falta de atenção, nos considerássemos responsáveis pelo seu nefasto sumiço.
Se respondermos sem pensar, assim no óbvio, estou certo que facilmente nos pronunciamos com uma palavra: hipocrisia. Porém, a meu ver, esta declaração de pesar é muito mais profunda e, estranhamente, é mesmo sentida como um corte na alma de cada um.
Gostava de interrogar: afinal, o que são estas pessoas numa cidade? Carlos do Carmo, em fado versejado e musicado, chamou-lhes os “loucos na cidade”. Há cerca de 30 anos li uma tese de um advogado francês –que já não recordo o nome- em que defendia que estes indivíduos, diferentes da maioria no estapafurdismo, tal-qualmente como a pequena delinquência, eram um quebrar da rotina nas urbes e pela sua acção pragmática, ainda que por vezes negativa, impediam que, em mimética estandardizada, fosse tudo igual. Por outras palavras, transportemo-nos para um agregado onde não se ouve um barulho, uma imprecação, onde tudo é previsível, onde a paz social é uma constante, um lugar paradisíaco, será que conseguiríamos viver num lugar assim? Penso que não. O homem é um ser social e ao mesmo tempo associal, tanto precisa de estar só como acompanhado. É capaz das maiores demonstrações de carinho, de solidariedade e bondade. No entanto, este mesmo homem, a qualquer momento, é capaz de, num repente, virar homicida e assassinar sem mácula na consciência. Se for em guerra, com a desculpa de estado de necessidade, mata dezenas, centenas, milhares de humanos. É portanto, em sincronismo, um ser pacífico e conflituoso. Isto para dizer que, para além de todos sermos bipolares, temos absoluta necessidade de exteriorizar os dois sentimentos que transportamos dentro de nós como instintos siameses.
E nova interrogação: o que tem estes dislates que descrevi atrás a ver com os dois comportamentos antagónicos –desprezo em vida e carinho na morte- perante um óbito? Comportamento que pode não ser avaliado somente num vagabundo de rua e ser alguém relativamente chegado?
Pelo conhecimento implícito, um falecimento desencadeia sempre em nós várias sensações desencontradas. Lembra-nos, por exemplo, que somos finitos, que a nossa vida é efémera, que a qualquer momento podemos perecer –este pressentimento torna-se mais latente tanto quanto mais velhos estivermos e próximos do fim. Mas, acima de tudo, na generalidade, no âmago de cada um, acende a luz do perdão, da caridade, e extingue ódios recalcados. É como se aquela imagem da morte de outrem nos viesse lembrar que todos erramos e somos pecadores. Que somos seres frágeis e fracos, e que, um dia, não se sabe quando, iremos também precisar daquela absolvição. Digamos, por outros termos, que, no nosso viver compulsivo, o desaparecimento de alguém, uma morte súbita, que tomemos conhecimento, toma assim no quotidiano o efeito de choque de um objecto arremessado na nossa cabeça.
Por outro lado, isto em relação ao desaparecimento destas pessoas invulgares -chamemos-lhe dementes ou outro epíteto qualquer- que nos cruzamos na rua mas que, provavelmente, nunca trocamos uma palavra ou um sorriso mas que, inconscientemente, passamos a admirá-los, penso, para além do sentimento de perda, solta também várias intuições diferenciadas. Enquanto vivos, transeuntes na cidade, olhamos para eles como o outro lado do espelho, o reverso de nós, a nossa alma despida. Ao mirá-los, naquele estado decrépito, é como se fizéssemos comparação entre o que somos e o que poderíamos ser. Vemo-los como a materialização dos nossos medos. E ao constatar que somos diferentes para melhor recebemos uma mensagem de bem-estar instantaneamente. É como se ao vermos uma pessoa assim, diminuída, nos obrigasse a um balanço imediato, mas também passível de ser emergente num futuro próximo e esta impressão, pela dureza da imagem viva, activa a nossa defensiva e alerta-nos para um hipotético perigo. Esta ilacção, em projecção mental, pode continuar até ao desaparecimento físico e visual da pessoa fixada pelo nosso olhar. Nesta altura, quando perdemos esta visualização, haverá um sentimento de culpa que se liberta em pena e dor materializada na disponibilidade em fazer o que for preciso para colmatar o que não foi feito anteriormente. Como se, em cada um de nós, houvesse uma implícita e absoluta necessidade de expiação de culpa pelo lapso. Poderemos pensar que haverá nesta manifestação um descarregar, um lavar da alma, por, durante anos e anos, nunca lhe darmos qualquer importância significante.

O MEU OLHAR

Sempre gostei muito de escrever. Há cerca de quatro décadas que exerço esta minha inclinação. Sempre escrevi regularmente para a “Página do Leitor” dos dois jornais diários da cidade, o Diário de Coimbra e o Diário as Beiras. Porém, como tinha de estar limitado à boa-vontade das redacções, acabava por ser um suplício a não publicação dos textos. Quem escreve por amor, fazendo-o com total entrega diariamente, precisa de sentir que é lido. O seu leitor é o carburante que alimenta a “máquina” que produz textos em frases encadeadas umas nas outras, mas versando sempre um sentido positivo assente no estético e moral. Alegadamente, sem leitor não haverá escritor.
Foi então que em 2007, com a ajuda de uma amiga para a problemática da Internet, criei o Blogue Questões Nacionais. E então, a partir daí, senti-me um passarinho pronto a voar. Numa década, já escrevi cerca de 11 mil posts, que se dividem em crónicas, textos de análise, humor e drama. De forma acutilante, incido essencialmente sobre a Baixa da cidade. Como sou comerciante, porque sinto na pele o sofrimento de uma nobre profissão ancestral que decai a olhos vistos, falo muito sobre o comércio na cidade.
Gosto de intervir na sociedade. Tenho uma necessidade premente de me fazer ouvir. Pode muito bem ser para alimentar o ego. É provável! Mas pode também ser pela minha história de vida. Afinal somos o resultado da adição de várias parcelas; o meio em que nascemos e crescemos, os caminhos que percorremos, os tombos que nos fizeram cair e a mão anónima e desinteressada que nos ajudou a levantar. Como amplificador, tento elevar os queixumes de quem trabalha e reside na zona velha e endereçá-los às autoridades competentes. Sem falsa modéstia, sem peneiras, sou um mero mensageiro que, pro bono, coloca ao serviço da comunidade um talento que julga possuir.
Não sei se o que faço, pela subjectividade impressa, é jornalismo na verdadeira acepção da palavra. Mais que certo não será. O que sei é que no que escrevo, para além do princípio da seriedade que me rege, aplico quase tanto carinho como de um pai para filho. Qualquer escrito passa a ser meu, muito meu, gerado nas minhas entranhas.
Por outro lado, sempre me preocupei em dar voz aos mais humildes, aqueles que, vestidos de anonimato, com a sua idiossincrasia, calcorreiam as pedras milenares da Baixa de Coimbra e nunca são motivo de atenção pública, nem mesmo no último suspiro. Por que todos temos uma narrativa, falo com eles, ouço os seus lamentos, enalteço as suas virtudes e, romanceando com carinho, conto as suas histórias de vida. Como a justificar a sua existência silenciosa e errante entre nós, talvez com a veleidade de servirem como documento de estudo social comparativo para a posteridade, tento mostrar que são pilares da comunidade –por que, embora pareça que não, de facto, são mesmo nossos sustentáculos existenciais. Ainda que subtilmente, a sociedade revê-se em figuras que quebram as normas societárias e alteram as rotinas e, sem dar por isso, acaba a amar os diferentes entre iguais.
A ideia subjacente a esta iniciativa com o título “ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS” é retirar do silêncio da clandestinidade citadina pessoas que conhecemos a fisionomia mas, para além disso, nada sabemos delas. Amam, sofrem, têm laços familiares, vivem e sobrevivem de quê? Dando-lhes visibilidade, poderemos fazer algo por elas? Ou estamos simplesmente a retratar a sua passagem efémera nesta vida?
Nestes dez anos, já escrevi e retratei mais de uma centena de personagens que passam ou passaram pelas ruelas e becos da zona histórica. Pode perguntar-se o motivo de apenas figurarem 13 rostos - que, como um está duplicado, são apenas 12- nestas “Jornadas Transdisciplinares”? A razão é muito simples: obedeceu a um critério de escolha dos responsáveis pelas jornadas. Mas, quanto a mim, serem estas pessoas ou outras, não lhe retira importância. Valem pela simbologia. A humanidade evoluiu muitíssimo na informatização tecnológica de meios que nos permitem saber tudo o que se passa no outro lado do mundo e até adivinhar o futuro. Facilmente poderemos saber que clima podemos contar dentro de um mês. No oposto, continuamos a ter imensas dificuldades em comunicar com o nosso confinante, falando pessoalmente com o nosso vizinho do lado.
Se esta exposição nos fizer pensar, nem que seja somente no tempo em que estou aqui a palrar como um papagaio, tenho a certeza de que estamos a contribuir para construir à nossa volta um mundo melhor.
Muito obrigado pelo convite.

António Luís Fernandes Quintans

2 comentários:

JPG disse...

Como sempre...

De uma sensibilidade acima da média, uma clarividência exemplar e a brincar com as palavras como só (alguns) filólogos sabem :)

Abraço!!!

claudiaq disse...

Que giro, Parabens pai! Como foi a conferencia, correu bem? Um beijinho!