sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

OS VELHOS DO MEU TEMPO



 Não sei por quê –ou talvez saiba-, os velhos caem na minha loja como mosca na sopa. Gosto de ouvir as suas histórias. Em projecção, é como se, neles, eu me revisse de aqui a uma vintena de anos, certamente se por cá ainda andar, já de bengala e arqueado sobre o peso das minhas memórias. Como tenho este bichinho da escrita, é a ouvir as suas compridas narrações que vou buscar o suco para muitas das minhas crónicas. Por muito simples que pareça não é fácil ouvir os velhos. Em muitos casos eles não têm ninguém que os ouçam e possam conversar. Sei isso porque já falei com muitos idosos. Já escutei imensos desabafos pungidos de dor e com muitas lágrimas à mistura. E já sei que qualquer um que se me dirija, por muito ocupado que esteja, tenho de tirar um bocado para ele. Pode até parecer que estou a tentar dar uma de bonzinho, mas não é nada disso. É assim um respeito grande que sai cá de dentro, como se estivesse a reviver alguns que por aqui passaram e me deixaram boas recordações. Vem-me à memória o velho Hébil, o Pinho, ambos pintores, o Fausto, o Luís, o Plácido, o Fernando e outros. Os velhos são como o Natal. Durante o mês de Dezembro o seu espírito estará presente todos os dias, até que passa a data e ausenta-se. Durante anos, meses, semanas um velhote, porque se lhe dermos atenção, nos sente como ancoradouro e visita-nos amiúde. Subitamente, sem se despedir, desaparece para não mais voltar. Umas vezes porque foi institucionalizado num lar, outras vezes, e aqui na maioria, porque morreu. Nos primeiros tempos temos um sentimento de perda, depois paulatinamente vai desaparecendo também porque outros virão ocupar o seu lugar deixado vago.
Dizia eu, e repito, que não é fácil aturar velhotes. Quase sempre são pessoas com feitios muito difíceis de aguentar, muitas vezes ruins de coração duro como pedras e insensíveis à partilha, e, por isso mesmo, as suas famílias se descartam deles. São muito egoístas e chegam a ser cínicos. Pouco flexíveis, raramente aceitam pontos de vista alheios. Por este motivo, quase sempre, estão isolados e sozinhos. Já numa idade avançada, os idosos tornam-se crianças crescidas, sempre a pedir atenção. Perdem a noção de tempo e o espaço que ocupam na vida do outro que o ouve. Às vezes é muito difícil descolar de uma conversa. As narrativas surgem-lhe em catadupa, encadeadas umas nas outras. Tão depressa estão na infância como, logo a seguir, recentemente, há uns anos, e sempre sem intervalo para descansar. Já me tem acontecido dizer que tenho de ir tratar de um assunto para quebrar a cadeia de exposições. Para conseguir os meus intentos, tenho mesmo de sair, fechar a porta, dar uma volta ao quarteirão e voltar. Só assim é possível interromper o ciclo. Actualmente sou ouvinte de dois anciãos, um homem e uma mulher, com quem converso. Rondam os 85 anos de idade. Ultimamente o homem, para minha pouca sorte, visita-me dia-sim-dia-não. Até tremo quando o vejo entrar. Já sei que, no mínimo, duas horas do meu tempo vão à vida. Também é verdade que o poderia despachar com alguma subtileza mas começo a embalar-me nos pormenores e pimba! Estou tramado! Já conheço quase toda a sua vida. Um drama familiar dos grandes. Esse é o problema! Daí eu ir escutando como se estivesse transformado num viciado.
Embora de contornos diferenciados, na mulher é notória a mesma falta de afecto e a necessidade de conversar sofregamente. Já há mais de um ano que, no meio de muitas lágrimas e choros entediados, lhe deu para insistir que tenho de lhe fazer o funeral. Quando me visita, como hoje, lá vem o tema à ribalta: “não esqueça que tem de me fazer o funeral!”. Nunca me pergunta como vou pagar. E eu, tentando despachar a coisa, lá vou dizendo que devemos falar de vida e não de morte. Mas de pouco vale, a lembrança continua. Hoje, para meu espanto e não pude deixar de largar uma gargalhada, disse-me que gostava de ir na última viagem num caixão de cerejeira. Aqui já tive mesmo de lhe perguntar quem ia pagar? Financeiramente, não posso com uma gata pelo rabo, argui. Mas a velhinha, como se eu quisesse transmitir o contrário, ou fosse surda, lá continuava na mesma lengalenga: “não se esqueça que tem de me fazer o funeral!”



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