quarta-feira, 1 de agosto de 2007

UM DIA SEM CARRO

O meu carro, talvez contagiado pelo dono, anda com problemas. Sinto-o abatido, com pouco ânimo. Nos últimos dias, logo de manhã, custa a pegar. Parece que está cansado, pareço sentir-lhe a língua de fora. Levei-o ao seu terapeuta, como quem diz ao mecânico, mas este disse-me que era um problema no sistema electrónico e, assim sendo, como se fosse o seu sistema nervoso, o melhor era levá-lo ao psiquiatra, como quem diz à marca. Sim, porque eu, como gente rica, tenho dois mecânicos, um para coisas simples e a marca para coisas complicadas. Ser rico não é fácil, tem destas coisas. Uma pessoa tem de ter tudo a dobrar. Tem duas vozes que usa conforme as ocasiões. Uma, a mais humilde, assim um pouco a cair para a cana-rachada, que emprega, como lana caprina, com a plebe, em que não se preocupa com o vocabulário, no dia-a-dia. Outra mais grossa, mais empolgante, mais formal, diria uma “voz de senhor doutor”, em que o léxico é escolhido ao milímetro, onde não se permitem deslizes ou verborreias verbais. Ser rico é poder até adiar a morte, como quem diz o anúncio, como aconteceu com Antonioni, o realizador de cinema Italiano, que coitado do pobre homem, então não é que o destino quis que ele morresse no mesmo dia do Ingmar Bergmam? Sinceramente, foi uma desclassificação. Logo morrer no mesmo dia do maior cineasta Sueco. Então a família, para não coincidir com o outro ícone do cinema, adiou o anúncio da morte do meu ex-amigo Antonioni. Fez bem? Claro! Gente rica e famosa é assim. Você tem inveja? Olhe vá bugiar e seja famoso. Alguém tem culpa de você ser um apagado escriturário de 3ª classe? Essa mesquinhes de portuguesito paupérrimo, de bolso roto, de tanto procurar uma moeda, e de sola gasta num sapato que já viu melhores dias. Sinceramente, parece uma pandemia!
Bom, mas com a conversa, quase que me perdi. Fui então à marca, ali para os lados da Pedrulha, que dista para aí uns oito quilómetros da Baixa da cidade de Coimbra –evita de estar toda curiosa que não vou dizer a marca, que cusquice barata, meu Deus, a paciência que tenho de ter com estes pobres.
Deixei então o meu bólide. A marca disponibiliza transporte gratuito –para gente rica como eu, é claro! Mas eu hoje, apetecia-me ser pobre. É daqueles dias que só a psicologia explica. Vai daí, não pedi transporte e fui para a paragem do autocarro em frente. Não fazia ideia a que horas passaria o autocarro. Como eram 9 e 10 minutos, pensei para comigo:”e se eu apanhasse uma boleiazita até à baixa?”. E se melhor o pensei, melhor o fiz. De braço estendido, polegar em riste, aí estava eu, todo lampeiro, como um pobre qualquer. Passou o primeiro, mulher por acaso, só por acaso, nem para mim olhou. Bolas, senti-me completamente insignificante. Bom, foi por acaso, pensei. Veio o segundo, um homem a conduzir, olhou para mim, engelhou a cara, torceu o nariz, arranhou na cabeça e continuou viagem. O que quereriam dizer aqueles gestos? Pensei. Será que ele adivinhou que eu era rico e estava ali a fazer-me passar por pobre? Só podia ser isso. Continuei de polegar em riste. Passou uma senhora, duas, três, quatro, e nada. Alto e pára o baile, agora é que vai ser, pensei, este que vem aí é dos meus, um Mercedes e conduzido por um homem, já cá canta, esfreguei as mãos de contente. Pois sim! O janota piroso, olhou para mim, mediu-me de alto a baixo, e como se pensasse, “querias ser como eu, não querias?” E deixou-me ali a olhar para o traseiro do seu Mercedes. Ainda gritei: “EU SOU DA TUA CLASSE…SOU DA CLASSE A”…mas está bem, ele desapareceu e foi engolido pela curva da rotunda. Até uma carrinha de transporte me ignorou, francamente.
Pois é verdade, ser pobre não é fácil. Durante vinte longos minutos, ninguém me deu boleia. Certamente pensavam que os pobres devem andar de autocarro...e foi o que me aconteceu. Surgiu então um autocarro parcialmente cheio. Reparei que cerca de 80% eram utentes com mais de 50 anos. Só talvez 20% seriam jovens. O que é que isto quer dizer? Nada. Apeteceu-me referir, só isso. Depois de levar com um velho em cima, numa curva, lá cheguei então ao princípio da zona baixa da cidade. Para minha surpresa o autocarro faz inversão de marcha e eu, como caminhante estagiário, desci e fui a pé, cerca de dois quilómetros. Bolas…é complicado ser pobre…

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