sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A APRESENTAÇÃO DO ABROLHOS



 Hoje, lembrei-me de vos trazer um personagem interessantíssimo que, seguidamente, irei apresentar-vos: Almerindo Abrolhos.
O Abrolhos –para os amigos, como costuma enfatizar -é um homem que gosto muito. Todos os dias estou com ele. Qualquer novidade, “trica”, ou “diz-que-disse”, nada lhe passa ao lado. Este homem, pela força da vida, pela sua experiência empírica, tornou-se relações públicas, psicólogo, filósofo, antropólogo, político, gestor, enfim, uma instituição de sabedoria. Olho para ele como uma mistura de admiração e alguma comiseração pelo seu procedimento. Mas, inevitavelmente, acabo sempre a admirá-lo. O Almerindo é um contorcionista social, um camaleão, jogando ao sabor das cores da conveniência própria. Para quem vive, e viveu, em Coimbra é o chamado “coimbrinha”. Um tipo que vive de esquemas, no interstício do sistema; duma inteligência invulgar e de uma voracidade de conhecimentos que amanhã lhe possam vir a ser úteis. O chamado “chico-esperto".
Quem quer encontrá-lo basta deslocar-se ao Café Santa Cruz, na Baixa de Coimbra. É o seu quartel-general, como costuma soletrar com alguma solenidade. No verão, neste Agosto de canícula, logo de manhã, lá está ele na esplanada do café, e junto à Igreja com o mesmo nome do estabelecimento. Na sua mesa, a chávena de café e três jornais. Dois diários da cidade, “As Beiras” e o “Diário de Coimbra”, e um diário nacional, “O Público”.
O café, “a bica”, que tomara há pouco, fora servida pelo senhor Costa, o empregado de mesa, que nas horas vagas é pintor de telas e aguarela.
O Almerindo tem aproximadamente 45 anos. Desempregado de longa duração. Trabalhou numa fábrica, ali para os lados da Pedrulha, mais de 25 anos. A empresa encerrou há cerca de 5 anos. No princípio, esta vacuidade de vida deprimia este excelso homem de cultura paisagista da urbe. Hoje, fruto do tempo, habituou-se e sem querer outra vida costuma referendar aos amigos que é um desempregado profissional, desempenhando o seu trabalho com empenho, dedicação e carinho.
Toda a gente gosta deste homem. É normal oferecer uma sandes e um sumo à miúda romena que lhe pede uma “moedinha, senhor”! Durante o dia, talvez pela proximidade, vai várias vezes à Igreja. É um católico fervoroso, dizem.
Eu gosto do Abrolhos, não só porque diariamente me dá as notícias de tudo o que se passou no dia anterior na cidade, mas também pela sua pose encenada ao pormenor. Tudo está de acordo com o personagem, como se ele fosse um “Casanova”, o escritor e aventureiro italiano que viveu entre Veneza e Londres, por meados do século XVIII. Ou então, de há trinta anos atrás, quem não se lembra, em finais da década de 70, do "Tonico Bastos", da novela da RTP, “Gabriela Cravo e Canela. Ou, ainda, na actualidade, um "Zé Camarinha", conquistador do belo sexo, dos Algarves e além-mar. O Almerindo é um ícone. Adoro os seus gestos maneiristas, o seu olhar sedutor. Aos seus olhos, não há mulheres impossíveis de conquistar. Tenho de confessar que ao pé dele sinto-me pequenino, quase insignificante, mas cada um é para aquilo que nasce. Eu nasci para trabalhar, ele para conquistar, e certamente deixar o seu nome gravado a fogo de paixão na história da cidade.
Basta reparar na sua imagem. É impossível ignorá-lo, quer seja homem ou mulher. Claro que estas falam a mesma linguagem do Abrolhos. É como se o homem tivesse herdado os genes da mãe e , ao vê-las, houvesse um clique e um entrosamento espiritual entre estes dois géneros, masculino e feminino.
As suas calças vincadas –hoje, por acaso, brancas-, a sua camisa de cor rosa desmaiado, e nas costas o pullover atado no pescoço. O seu sapatinho abicado, de verniz, comprado na Romeu –como gosta de apregoar, alto e bom som. O seu cabelo, penteado para trás, com um pouco de gel fixador, preto, pintado, obviamente, para disfarçar umas cãs rebeldes, que um conquistador nunca se entrega a uma velhice temporal. Eis então o Almerindo Abrolhos. Vou fazer as apresentações:
-Almerindo…apresento-te estes senhores –e aponto para vocês.
-Prazer, Abrolhos, para os amigos –levanta-se da cadeira e faz uma reforçada vénia, com o braço direito a fazer um largo e exagerado círculo de enleio.
Em frente a nós vai a passar um janota bem vestido, parece-me conhecê-lo. O homem dá de caras com o Abrolhos, faz um desvio e vem ter connosco à nossa mesa.
-Bom dia Abrolhos! Cumprimenta o passante, com voz repenicada, deve ser político, penso para mim.
-Bom dia Senhor Doutor, como vai? Gostei muito de o ouvir discursar ontem na Câmara. O Senhor Doutor marca a diferença num hemiciclo onde pondera a mediocridade. Vai ser deputado, pelo partido, nas próximas legislativas, não vai?
Reparei nos olhos do homem, até brilhavam de tanto elogio encomiante.
-Ó Abrolhos…não diga isso… não diga isso… há lá muito melhores do que eu –esta frase foi dita a titubear, quase aos soluços pela emoção.
O homenzinho foi embora, depois de ter pago os nossos cafés, e de se despedir com mil lisonjas ao Abrolhos. Para mim, nem sequer olhou. Era como se eu nem existisse, e como se estivesse invisível.
-Ó Abrolhos, desculpa lá, conheço este gajo de qualquer lado. É político não é? Interroguei.
-É…”meu”…é um vereador do PSD, ali na Câmara…um estronso qualquer-enfatizou.
Entretanto, na mesa ao lado sentou-se um casal quarentão. O homem lê um jornal e a mulher parece divagar, de olhar distante, talvez perdido numa memória.
Às tantas, começo a ver a troca de olhares furtivos, carregados de sensualidade, entre ela e o Abrolhos. Ena pá! O que estava ali a acontecer era um milagre de fluidos químicos entre mortais.
A mulher remexia-se na cadeira, como se estivesse tocada pelo demónio. Eu, sem saber o que fazer, apetecia-me fugir, mas estava preso nesta peça teatral. O olhar dela –meu Deus- parecia querer embrulhar o Abrolhos. Nunca vira nada assim!
Sub-repticiamente, levou as mãos aos seios, acariciando-os e subiu a saia ligeiramente, pondo à mostra uma perna torneada, certamente, por um artista metafísico.
Murmurou qualquer coisa ao ouvido do marido, que continuava entretido a ler o jornal, e, com um longo olhar de enleio, convidou o Abrolhos a seguí-la. Ela levantou-se e entrou na Igreja de Santa Cruz. O meu companheiro de mesa, como autómato, seguiu-a. Nem se despediu de mim. Estava explicada a religiosidade do Abrolhos…

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