quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

MEMÓRIAS MELÓMANAS



 Sempre gostei muito de música. Não um melómano normal no verdadeiro sentido do termo. Isto é, desde pequeno, sempre gostei de inventar as minhas próprias melodias.
Como qualquer musicómano, sempre gostei de ouvir ritmos compostos e tocados por outros, e faço delas, muitas vezes, as minhas companheiras diárias. Engraçado e estranho, ao mesmo tempo: nunca consegui decorar uma letra inteira de uma qualquer harmonia. Às vezes pergunto-me porquê. Posso adorá-la, mas não passa disso. Não irei ver o concerto ao vivo do meu cantor preferido, nem jamais lhe dispensarei uma gaveta no memorial do meu cérebro, mesmo até a minha eleita. Mas o êxtase, o meu prazer supremo foi sempre fazer composições minhas. Ao longo dos anos arquivei, em registos magnéticos, em cassetes, talvez centenas de segredos meus, cantados e tocados à viola. Sempre que via algo que me tocasse fundo, compunha. O estranho é que nunca consegui tocar nada meu em público, para além da minha família e dois ou três amigos. Nos últimos tempos, deixei mais os versos e a viola e passei-me mais para a prosa.
Lembro-me, por volta do início da década de 60, teria eu então 8 anos, frequentando a 2ª classe da escola primária, de, na minha casa da aldeia, estar a estudar na varanda e a trautear uma canção. O meu tio Ernesto –um tio daqueles que nunca mais esquecemos na vida, pelo seu ar bom, sempre bem-disposto, permanentemente com um sorriso nos lábios, de bonomia paciente e pachorra coladas na face- me interrogar como era possível eu estar a estudar e a cantar. Não me lembro o que respondi, mas sei que era usual eu fazer isso, e a verdade é que esta dispersão de concentração nunca me afectou.
Quando quase todas as casas portuguesas tinham há décadas um aparelho retransmissor, e na minha aldeia algumas delas, lembro-me da primeira telefonia que foi adquirida lá para casa, por volta de 1962. Foi, para mim, um acontecimento quase único, só igual a outro passado mais tarde, já trabalhava há cinco anos, tinha então eu 15 anos: a compra da minha primeira bicicleta.
Era um pequeno rádio a pilhas, um Philips, de cor azul-esverdeado. Pela escassez financeira, a electricidade ainda não pudera entrar na casa dos meus pais. A luz nocturna era rebuscada em candeeiros alimentados a petróleo. Como hipnotizado por aquele aparelho mágico, dava voltas à cabeça como era possível sair som daquela caixa. Estariam as pessoas dentro dela? Imaginava-me a cantar lá dentro também.
É certo que já havia uma televisão na “venda”, a única taberna e mercearia da aldeia. O televisor estava colocado num cubículo das traseiras do estabelecimento. Estava transformado, à época, numa sala de cinema. Os bancos eram corridos, em várias filas. Como quem diz, eram tábuas, em bruto, pregadas nuns pés em forma de “W”. Pagava então cinquenta centavos de alpaca para ir ver o Henrique Mendes no pequeno ecrã a preto e branco. Mas só excepcionalmente ao Domingo, porque cinco tostões eram muito dinheiro para quem nada tinha.
A “minha” música sempre me acompanhou. O meu sonho era ser cantor. Sonhava com isso noite-e-dia. Vivia do sonho e para o sonho. Imaginava-me um Elvis a cantar num conjunto. Lembro-me de uma história engraçada, acerca disto, em que mostra que era um ideal comum no tempo para miúdos da minha idade: tinha 16 anos e estava a trabalhar como empregado de mesa, durante a época de verão, num café na Figueira da Foz, mais propriamente em Buarcos, no Café Beira-mar, onde, na altura, o autocarro dava a volta ao Largo. Travei conhecimento com dois amigos da mesma idade, com o mesmo sonho em tocarmos num conjunto, que trabalhavam em dois cafés ao lado, um era o Pena Branca e outro era o da Varina (hoje é uma geladaria), salvo erro chamava-se mesmo Café Varina. Trabalhávamos todos os dias até ás 2 horas da manhã, só com intervalo para as refeições –normalmente não tínhamos folga semanal, porque ganhávamos à percentagem, 10% sobre qualquer serviço prestado de alimentação ou bebida. Então uma noite, depois das 2 horas da manhã, saímos os três juntos e parámos junto a um prédio. A conversa, como de costume, ou ia para as miúdas ou para a música. Nessa noite calhou falarmos na composição do conjunto. Eu era o vocalista, o "Zé Manel" da Lousã era o viola-solo, e o "Quim Zé" era o baterista. Ora se havia elementos, porque não ensaiarmos? A falta de instrumentos não era problema perante a nossa indomável vontade e toca a ensaiar. Não sei se a senhora do segundo andar, do prédio contíguo, reprovou a minha má interpretação como vocalista, a fazer-me passar por John Lennon, se seriam os gemidos saídos da boca do "Zé Manel", a imitar o Jimi Hendrix na “guitarra” que não lhe agradaram, ou então, sabe-se lá, abominou o bater das baquetas nos pratos da bateria do "Quim Zé" a imitar Phil Collins. A verdade é que a senhora não esteve com meias medidas, e lá das alturas, atirou um penico cheio de mijo para cima de todos nós e sentenciou ali mesmo o fim do show e do futuro conjunto musical.
Durante uns anos, quando nos encontrávamos, relembrávamos esta história e fartávamo-nos de rir. Hoje não faço ideia onde param os meus ilustres colegas e frustrados músicos como eu. A vida difícil, da época, não permitiu que nenhum de nós seguisse a vocação a que legitimamente deveríamos ter direito. Os nossos filhos nunca darão valor às oportunidades que lhes concedemos e que eles, quase provocadoramente, não aproveitam. Enfim…

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