sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A ESPERANÇA NA TERRA DO NUNCA

Ontem o telemóvel tocou. Era o meu amigo Eufrásio. A dez dias do Natal, pensei ir receber mais uma mensagem natalícia, própria desta quadra. Antes dele falar o que quer que fosse, ou ouvir a sua voz, comecei logo por lhe chegar ao seu “calcanhar de Aquiles”, dizendo cobras e lagartos do seu clube de coração, o seu amado Sporting. Sem a resposta a que me habituara, no outro lado, este homem chorava desoladamente. Com frases lancinantes, entrecortadas por soluços desesperados de dor, quase sílaba a sílaba o meu amigo repetia-se, como um velho gramophone com disco riscado: “levaram-me tudo…só deixaram a cama o fogão e pouco mais…”
-Mas levaram-te tudo, o quê? Estás a brincar comigo?!
Ele repetia, incessantemente, -levaram-me tudo, pá!... As máquinas de lavar roupa, de lavar louça… a televisão, a mobília da sala, os sofás…o relógio grande, que tinha na sala…os quadros, o computador…”
Comecei a aperceber-me de que algo de grave se passara e tratei de mudar o meu tom de voz, rapidamente passei do ar de gozo para a compreensão complacente. Intuí imediatamente de que estava perante um gravíssimo drama.
-Ó Eufrásio, desculpa esta minha entrada desabrida, conta-me, o que aconteceu aos teus móveis. Foste assaltado, foi isso?! Infelizmente, é cada vez mais o prato do dia, tentei amenizar a conversa com este discurso condescendente. Calma! Accionas o seguro e, embora não recebas tudo, e muito menos o valor afectivo que tinhas às tuas coisas, mas pelo menos vais poder substituí-los. Não te preocupes vão ressarcir-te. Calma, pá! É Natal, não se acabou o mundo. Vão-se os móveis, salvaste-te tu. Isso é que interessa. O resto pouco importa, são bens substituíveis. Tudo se resolve. Podes contar com a minha ajuda e também com a tua família; sabes que podes contar connosco numa altura destas, rematei em jeito de consolação, embora soubesse que não havia nada que apagasse a sua dor, e muito menos palavras. Esta nossa mania de quando uma pessoa está afogada em lágrimas num rio de mágoas, incompreensivelmente, ainda a encharcamos mais com palavras que, a nosso ver, são de “levantar o moral”, mas, tantas vezes, têm efeito contrário, o melhor que devíamos fazer era estar calados e deixar-nos envolver pelo silêncio. Ao julgarmos estar a fazer um dever de solidariedade, com palavras circunstanciais de estímulo, reparamos que do outro lado, em cima de toda a dor sentida em chaga ferida por seta, a pessoa a quem nos dirigimos é que acaba por nos fazer o favor de nos estar a ouvir. Foi este o caso, até que fui interrompido bruscamente pelo meu amigo Eufrásio.
-Ó pá, podes calar-te e ouvir-me? Ou liguei-te para te ouvir a ti? –Reclama, quase em fúria, como um direito reivindicado legitimamente.
-Foi o Tribunal, pá! Dívidas que eu tinha –e desata mais uma vez aos soluços.
-O Tribunal?! –Lembrei-me então que há muito suspeitava que a vida do Eufrázio não era aquela que ele, a tudo custo, queria aparentar. Mas, bolas, estamos a dez dias do Natal. Será moralmente justo privar-se uma família dos bens que lhe fazem falta? E, neste caso, o Eufrázio tem mulher, dois filhos e dois netos pequenos. Um dos filhos está casado e ficou a viver lá em casa. Moralmente não é justo, mas a lei poucas vezes caminha ao lado da moral. A lei é racional e fria, quanto muito tenta preservar os bons costumes –talvez também se deva a isso a venda nos olhos de Têmis ou deusa romana Iustitia. E o meu amigo Eufrásio falhou o pagamento de uma dívida a um credor que desconheço, mas que foi reconhecida, em título declarativo, pelo tribunal e foi executado. E quanto ao direito legítimo de um credor cobrar uma dívida, isso não se discute. Filosoficamente, poderíamos avocar as razões, em contraditório, que levaram o meu amigo a não poder cumprir a sua obrigação, mas isso não interessa. Ou interessaria muito aqui, se as invocássemos, uma por uma, e que estão na base do seu incumprimento
Especulativamente, de uma forma romântica, se vivêssemos num mundo perfeito, em Dezembro, mês da paz, da concórdia da reunificação da família, vulgarmente apelidado de mês de Natal, paravam as guerras em todo o mundo, as quezílias dentro e fora da família, fora de portas e discussões entre vizinhos. Não se prendia ninguém, as dívidas executivas não eram cobradas neste mês, os ladrões faziam folga, não assaltavam, e os polícias, em vez de caras carrancudas, substituíam-nas por sorrisos abertos. Neste mês, em vez de todos darmos, obrigatoriamente, uma prenda supérflua, daríamos realmente o que as pessoas precisassem mesmo, e, no limite, se pouco pudéssemos dar, oferecíamos um sorriso. Não será o menos custoso? Continuamos a fazer do Natal um festim consumista, parco em humanidade e farto em individualismo narcisista. Quando começamos a pensar em mudar de rumo e proporcionar um pouco de felicidade às pessoas que nos rodeiam? Todos juntos, mesmo com grandes acções, não mudamos o mundo inteiro, mas, paradoxalmente, sozinhos, com um pequeno gesto, podemos mudar o que está à nossa volta, não podemos?

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