quarta-feira, 25 de outubro de 2023

UM SOLSIL NA LONGA ESTRADA

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Meu querido…”, e, como um caminhante sequioso à vista de um charco de água estagnada, lançou os braços envolvendo o meu pescoço com a força possível de uma mulher de cerca de nove décadas. O seu rosto, lavrado em sulcos, gelhas, pelo arado do tempo, sereno como um campo de seara em flor, abriu-se completamente e, estremecendo, pareceu ter sido tocado por um choque eléctrico. Os seus olhos, como uma salva de prata que há muito não é tocada, iluminaram-se e ganharam um novo brilho. Os cabelos prateados em descanso de hábito aparente, esparramados na sua pequena cabeça como a água do mar estendida sobre a areia branca, de repente, pareceram ganhar nova vida. Os membros superiores, trabalhando em dobrado contra singelo, certamente para compensar a forçada inactividade dos inferiores, perros pela artrose da longevidade, acompanhavam as palavras calmas saídas da sua boca em estranha simbiose entre a tranquilidade e o bem-estar.

Às minhas interrogações de como se sentia na sua “nova casa” respondia com suavidade e manifesta felicidade. “Os funcionários são todos inexcedíveis, simpáticos e prestáveis, sempre prontos a ajudar os mais velhos, até nas tarefas mais simples como o banho, por exemplo. A comida é muito boa. O companheirismo entre utentes é do melhor. Temos várias actividades ao longo da semana para não sofremos de rotina. Estou aqui muito bem. No meu verdadeiro lar, em Várzeas, apesar de lá sentir o calor do meu ninho e onde fui muito feliz, foi lá que nasceram os teus primos e convivi com o meu adorado “Manel”, o teu falecido tio, já não tinha condições para lá continuar, sobretudo, devido às escadas que não me facilitavam o acesso. Apesar de volta e meia ser tomada pela solidão, os teus primos, os meus filhos, visitavam-me muitas vezes. Olha, o Fernando, como já está reformado e tem mais tempo livre que os demais, ia ver-me diariamente. Tenho uns filhos muito bons. Até as minhas noras e os meus netos são uns queridos. Tive muita fortuna na prole que me calhou em sorte.

Que bom teres vindo ver-me, meu sobrinho adorado. Sabes que sempre gostei muito de ti, não sabes?!?

Todos os dias, por duas vezes, de manhã e à noite, em conversa com Deus, peço por ti e pela Ana, a tua companheira, e por todos os que me fazem bem à alma.

As paredes do Lar eram brancas, ou melhor, as paredes da Casa de Acolhimento – porque Lar, verdadeiramente Lar, só há um, o nosso onde cada olhar nas paredes e nos objectos inertes, aparentemente sem expressão, em silêncio mudo, contam toda a narrativa da nossa existência. O branco passou a ser o imaculado, o complemento moral universalmente aceite para quem no fim da história procura a paz para si, aceitando os seus erros na longa estrada, que é a vida.

O epílogo da nossa passagem terrena é, por mais que se evite ser, um acerto de contas com o passado, um expiar de contas entre nós e os outros, um contraste diário, uma análise intempestiva e repetitiva, entre o que fizemos na altura e deveríamos ter feito. O circunstancialismo da época não serve de atenuante para quem, com humildade, questiona a sua imperfeição humana. Para estes, se o tempo voltasse atrás facilmente trocariam o sofrimento mental por mais dores físicas. Felizes daqueles idosos que se aceitam sem pôr em causa os erros do seu passado.

Já lá vão seis meses, a perder de vista, que a minha tia Dorinda trocou a sua casa e a pacatez da aldeia pela estada no Lar Solsil, em Silveiro, Oliveira do Bairro. Todas as semanas, repetidamente, em conversa com a minha mulher, eu relembrava que ainda não tinha ido visitar a minha tia. Não estava em causa somente a obrigação por ser chegado, mas, sim, a devoção, o respeito por alguém que muito gosto.

É certo que não tinha o número de telemóvel dela, mas poderia ter ligado para a instituição e pedido para falar com ela. E não me será difícil adivinhar o quanto, em minutos, teria contribuído para a sua alegria.

E os dias, inexoravelmente, passam a correr. É uma desculpa esfarrapada dizer que não temos tempo – contra mim escrevo. É como se, com a explicação balofa, não quiséssemos admitir pacificamente que pouco ligamos aos mais idosos.

Transpus a entrada do Solsil com ar pesado, de culpa, por não ter desculpa para a falta de comparência mais cedo junto do meu familiar.

Quando saí, cerca de noventa minutos depois, prometendo a mim mesmo que iria ter mais cuidado no futuro, senti-me leve como um passarinho. Tinha dado um passo para a minha redenção.

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