quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A TRUPE



 De tempos a tempos somos acometidos de uma nuvem tóxica que nos invade, ocupando todos os nossos espaços, visual, mental, sociológico e político, e tudo, o que anteriormente era o epicentro das nossas preocupações, deixa de ter importância. De repente este país de velhos, de meia-idade e de novos acorda de uma modorra recorrente e, em metáfora, como viesse à janela, grita a plenos pulmões: “Acudam! Que os homens estão a bater nas mulheres!”. Este grito de Ipiranga, que em vez de libertação carrega frustração, parece mesmo uma súplica, como se acontecesse pela primeira vez, mas não é. Desde o lugar mais recôndito até à cidade grande não se fala em outra coisa. Os ecos de indignação chegam a São Bento e a tudo quanto for poder, desde o bispo até ao presidente da junta de freguesia. O Governo convoca o conselho de ministros e realiza uma reunião extraordinária. O ministro da pasta dá um murro na mesa: “é preciso criar mais uma lei agravada!”. Num ápice, bater na patroa passa a ser crime público e sai legislação em barda para salvaguardar a mulher da ira do mastodonte abrutalhado. Como se se varresse o pó para debaixo do tapete sem verificar a causa e sem tratar do caruncho que lhe dava origem, entra-se aparentemente num mundo novo sem educar, sem ensinar para alterar a mentalidade dos sujeitos. O que muda é a coercitiva obrigação de tratamento. Mas a cultura e os costumes não se convertem de um dia para o outro e apenas por decreto. Ninguém se lembra que, sem uma pinga de indignação durante todas as gerações hodiernas, contemporâneas e ancestrais, foi normalíssimo ouvir gritos de dor na vizinha mas não se intervinha porque “entre marido e mulher ninguém deveria meter a colher”. O resultado destas correrias e alterações legislativas traduziu-se, só no ano passado, em cerca de três dezenas de mortes por violência doméstica.
Agora o que está na moda – e até surgir outro tema que abafe este- são as praxes académicas. As conversas são recorrentes entre todos os becos e esquinas, passando pela tasca mais remelosa, jornais e revistas e até a RTP1, com os Prós e Contras a ser realizado em Coimbra para a semana, sai de Lisboa para se apresentar na cidade dos estudantes a discutir a prática estudantil.
Num piscar de olho, os estudantes passam de bestiais a bestas. De inocentes almas de capas pretas e futuro da nação, passam a corvos negros e a ser piores que um “serial killer”, assassino em série –dixit, Filomena Martins, no Diário de Notícias (DN) de 25 de Janeiro. Continuando a citar esta jornalista no artigo com título “O que é uma praxe?”, “são idiotas, humilhantes e animalescas. São crime”. Também Catarina Martins, professora universitária e que há vários anos se insurge contra esta prática académica, diz que “são o aviltamento, com inegáveis contornos sexistas. São meros ritos de passagem, sado-masoquistas, de chefes, com veia ditadora de feira, com o fim de criar círculos de conivência e redes de compadrio de potencial utilidade no futuro. (…) É chocante verificar que os estudantes universitários e também a Academia continuam, através de todos os seus componentes, a ignorar do alto do Olimpo o que se passa”.
No mesmo DN, do dia 25, Duarte Marques, deputado do PSD, em resposta a uma pergunta, afirma: “Repare que não vê relatos de abusos em Coimbra”. 
Mas o que vemos na Internet? Alunas brasileiras a ostentarem cartazes com frases discriminatórias proferidas por professores e alguns alunos na Universidade. Como até agora não se viu grande reacção de quem a deveria remeter, presume-se que isto se passa numa outra Coimbra, que não a Lusa Atenas.

SIM OU NÃO?

Como ressalva, gostaria de dizer que não tenho uma posição muito definida assente no patológico maniqueísmo, sim ou não, que teima em enevoar esta questão. Não sei se se deve proibir porque não –como já li e ouvi a tantos comentadores-, não sei se deve continuar porque sim. Na minha forma tosca de ver este problema, como em tudo, há sempre um campo neutro entre os radicais “sim” e “não”. É nesta terra de ninguém, entre nim e o talvez que não se discute, que residem os pormenores, a essência das coisas, a motivação para os actos. A meu ver, é aqui, partindo pedra a desbravar o conhecimento, que se deve procurar a origem de todos os males. Acho que a sociedade portuguesa enferma de um problema endémico, talvez herança do Antigo Regime autoritário do Estado Novo, resolve tudo -sem resolver nada- com a proibição. A solução para todos os males, na óptica de quem tem poder, está na legislação agravada e na coima –a propósito, ainda hoje verifiquei um facto incrível: quem for apanhado sem bilhete num autocarro dos SMTUC, em Coimbra, terá uma multa única de 160 €. Saliento que o preço do título de uma viagem, se adquirido no motorista, é de 1,60 €. Uma coima destas, para além de ser anti-pedagógico, eivada de ódio à prevaricação –como se a perversão e o subterfúgio fossem transcendentais, não humano, e não estivesse dentro de nós- e desrespeitosa pelo utente, está carregada de iniquidade e imoralidade. Só juristas que não têm o mínimo de conhecimento da antropologia e psicologia de massas podem legislar assim.
Em vez de se procurar a razão na nascente, na causa comportamental, para chegar à foz, à consequência de todos os desmandos, faz-se o contrário, começa-se pelos estragos a jusante, proibindo ou penalizando fortemente o infractor, como se esta ilusória construção de diques para evitar futuras repetições levasse a qualquer lado, e daí lavando as mãos como Pilatos. Dos resultados nem é preciso escrever, basta lembrar as mortes por violência doméstica.

MAS E POR QUE NÃO? E POR QUE SIM?

Começo por dizer que cumpri o serviço militar. Ora para quem lá andou, sabe-se que a tropa assenta fortemente no tradicionalismo da praxe. Deve-se também acabar com este ritual? Ou, como está acontecer com os exageros da Academia Militar, porque já existe normatividade no Código Penal, levar a juízo aqueles que, em posição de domínio, abusam? Aproveito para contar o quanto a tropa me fez bem e ajudou a desenrascar-me na vida. Até ir para a vida militar, porque era muito tímido, nunca tinha pedido boleia porque tinha vergonha. Curiosamente, assentei praça em Estremoz e também para poupar o dinheiro da viagem, juntamente com outro amigo, fazia todo o trajecto, de mais de 300 quilómetros, até Coimbra de polegar içado e mão estendida na estrada.
Mais ainda, pegando nos considerandos de tantos articulistas que encaram a praxe como um cerimonial de humilhação e submissão, será que a colectividade, na sua hierarquia de poder, não assenta fortemente numa práxis –tentando manter as pessoas ocupadas fisicamente para não pensarem-, numa prática vertical de cima para baixo? Será que esta declarada humilhação e submissão, quando não atente à liberdade e ao valor vida, perante o mais forte não será de todo saudável, no sentido de que faz libertar o rugir do leão que está dentro de cada um? Ou pelo contrário, os mais velhos e tomando em conta o que somos, a dureza fez de nós animais amestrados? Continuando a escrever por escrever, poderemos especular: será que os nossos filhos, os jovens de hoje, que não vão à tropa, não passaram nem uma ínfima parte das nossas dificuldades, serão e estarão mais disciplinados e preparados para o grande combate que é a vida, nesta crise que vivemos?
Mais ainda, vivemos numa sociedade polarizada em dois extremos, ou bipolar. Nesta questão avaliaram-se sempre os estudantes como o resultado da educação dos pais –cá está a bipolaridade: pais/educandos. Daí a célebre geração rasca, baptizada por Vicente Jorge Silva, em 1994, enquanto director do jornal Público. Mas esquecemos todos que nesta questão da educação a formação –através dos formadores- também conta. Neste caso a colectividade deixa de ser bipolar para ser tripolar. E, naturalmente, devemos chamar à colação os professores. Achei sempre muita graça, desde o início do mandato de Sócrates em 2005, avaliarem-se os professores do ensino básico e do Secundário mas colocarem sempre os do ensino superior de fora. Acontece que, na minha forma de ver, nesta questão das praxes académicas alguns professores universitários, pela sua postura arrogante e de constante humilhação e submissão do aluno, também contribuem muito para o que se passa fora de aulas. Eu andei lá há poucos anos e posso escrever sobre o que vi. Saliento que felizmente há excepções e muitas mas as ovelhas negras, como diabretes a espalhar o vírus do mal entre uma geração recentemente tomada como maior de idade, estão lá. Quantos alunos se suicidaram por falta de enquadramento nas matérias e sem que o regente da cadeira movesse uma palha para lhe acudir? Ninguém sabe, porque também não haverá muitos estudos sobre esta causa-efeito destruidora de sonhos. Quantos alunos ficaram traumatizados pela vida fora e apanharam esgotamentos pela forma como foram tratados em exames de orais? Ninguém sabe, porque também não interessa esgravatar no fundo da estrumeira. O que está na moda, agora, é mesmo discutir a praxe. Ponto e parágrafo.


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1 comentário:

Daniel disse...

Excelente texto.
Só quero esclarecer uma questão, esse caso das alunas brasileira que se dizem vitimas de xenofobia e discriminação, foi mais um caso de politica barata sem qualquer fundo de verdade, trata-se apenas de uma campanha protagonizada por uma lista candidata à AAC que procurava mediatismo.
A reitoria investigou e não houve nenhuma denuncia oficial relacionada com estes casos.