quinta-feira, 9 de maio de 2013

DE RASGAR O CORAÇÃO



 Na velha loja de velharias, implantada na cidade há quase duas décadas, perdida nos encontros da história e nos cruzamentos da vida, os objectos expostos no estabelecimento tremem de dor perante os continuados apelos ouvidos e saídos da boca de gente que merecia mais consideração e respeito: “por favor, senhor, compre-me esta boneca. É da minha neta! Mas o que hei-de fazer? Ela está desempregada! A minha reforma é de duzentos e poucos euros. Nem dinheiro tenho para a farmácia –eles não me fiam. Estou a passar fome, senhor. Acredite!”
No canto, um velho Gramofhone, invenção de 1887 do alemão Emil Berliner, que nos anos loucos de 1920 alegrou e engrandeceu uma qualquer grande casa senhorial, em face da verborreia de lengalenga da senhora idosa, parece contrair-se em sofrimento, como se, em especulação, comparasse o seu tempo de abastança com este início de século prenhe de quadros de miséria humana. Ao lado, um velho relógio de torre, em lembrança de Trindades ouvidas num campo lavrado à força de um homem suado e uma parelha de bois, toca a reboque para reunir outros congéneres. Mas o seu chamamento não surtiu efeito. A maioria dos contadores deste tempo que não deixa recordação, tal como os humanos, estão adormecidos, sem corda, sem força anímica, para poder entabular reacção.
Um passo à frente, e no mesmo ambiente secular, um busto em terracota, certamente um reivindicativo republicano do final da Monarquia, austero, de bigodes retorcidos e olhos pregados na cena, parece pensar se teria valido a pena a mudança de sistema e augura condenar esta política hodierna que manda para o charco a tão apregoada dignidade da pessoa humana. Sem falar e apenas pela imagem do semblante duro, sugere que o que está acontecer é uma tragédia social de consequências terríveis e incomensuráveis e não pode continuar. É demasiado atroz para se poder passar ao lado. Como a dar-lhe razão, o cuco de um relógio com o mesmo nome, um Junghans fabricado na Alemanha, solta seis ais, gemidos e chorados, como se estivesse solidário com a causa republicana nacional. Na mesma parede, ao lado, uma máquina portuguesa, da velhinha Boa Reguladora, praticamente engolida na destrutiva onda da globalização, quem sabe por desprezo, nem se dignou responder ao símbolo da indústria alemã.
Em frente, numa mesa, tosca e carcomida pela memória e talvez fruto de um desaparecido marceneiro que pela noite dentro ganhava a vida em suprimento familiar, umas dezenas de pratos da Fábrica de Sacavém jazem inertes como esqueletos de engenho e arte que, dando trabalho a milhares de pessoas até aos idos anos de 1980, foi engolida nos fumos revolucionários da Abrilada. Numa prateleira, uns quantos rádios a válvulas, embora mudos mas prontos a debitarem música e notícias a qualquer momento, do seu olho-mágico avaliam todo o cenário envolvente com apatia e misericórdia. Em frente, uns alfarrábios empoeirados, que conservam na lapela as impressões digitais de várias gerações, sugerindo em analogia um lago de águas paradas e sem vida, parecem questionar: o que é isto? Para onde caminhamos?

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