quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A DAMA DE NEGRO SOZINHA

Gosto de observar as pessoas. Dá-me um prazer imenso sentar-me num qualquer café e, mesmo estando a ler um jornal, apreciar os gestos; um arranhar na cabeça, um contrair de feições ou uma sonora gargalhada saída da boca de qualquer um.
Como habitualmente faço, um destes domingos, depois de comprar o jornal, instalei-me, num café, no Luso, que dá de frente para a fonte de S.João. Daqui “sinto” o pulsar da pacatez desta Vila célebre pelas suas águas medicinais e de mesa. Do meu ponto de observação apercebo-me da forma calma como alguns visitantes passeiam e outros que encostam o seu carro ao lado da fonte e, do seu interior, como sacando coelhos de uma cartola, retiram garrafões vazios, e mais garrafões, às dezenas, num processo sem fim. Pergunto-me para que quererão estas pessoas tantos garrafões de água.
Depois de me instalar numa mesa, junto ao vidro, de onde tinha boa visibilidade de toda área circundante, comecei a ler o “Público”. Foi então que na mesa ao lado se sentou uma mulher. O meu interesse por ela não foi imediato; começou quando ela se levantou e foi fumar para a esplanada na rua. Ela teria cerca de quarenta anos –ou mais? É daquele tipo de rostos que por mais que olhemos não conseguimos aproximar a idade- magra, de longos cabelos negros, de pele bem cuidada e de porte fino. Com pouco mais de um metro e meio de altura. Saltava à vista que teria tido uma educação refinada, certamente num bom colégio. Vestia bem, roupa de marca e de bom corte.
Um pormenor saltou-me à vista quando a vi a fumar na esplanada: esta mulher tremia tremendamente. “Deve ter Parkinson”, pensei com os meus botões, “mas tão nova”!? Estava lançada a semente no campo lavrado da minha curiosidade. A partir desse momento, os meus olhos dividiam-se entre o jornal e a dama de negro. Durante duas horas reparei que bebeu cinco chás, sempre acompanhado com muito gelo. Punha uma das mãos em concha para conseguir colocar o máximo de pedras de água no estado sólido. A seguir era sempre o mesmo ritual: o bule, na sua mão direita, a dançar, por força das tremuras, como movido por forças paranormais, com o fio de chá oscilante entre metade a entrar no copo e metade a sair para o pires. Depois, rigorosamente, eram oito comprimidos de adoçante para cada copo de chá. No intervalo dos vários copos de chá, falava ao telemóvel, numa conversa que, mesmo não prestando atenção, teria forçosamente de ouvir parte da conversa –ela estava mesmo ao meu lado- numa voz suplicante, com frases entrecortadas, exclamou: “tia, estás a ouvir-me? Ouve-me, por favor, preciso de falar contigo. Preciso que me escutes. O papá mal fala comigo, diz que tem muito trabalho. Tu és a minha única amiga, tia…por favor não deixes de me ouvir. (…) Não tia, não preciso de dinheiro, isso é o que menos falta me faz, preciso, isso sim, é de alguém que fale comigo…”- retorquiu a mulher em lamento lancinante. Senti uma profunda pena e vontade de me oferecer para falar com ela.
Depois de fazer outro telefonema, levantou-se. De porte altivo, saiu e dirigiu-se a um táxi. Sobre a mesa ficaram duas caixas de adoçante, tentei chamar a sua atenção para esse facto. Em vão, como dama de extirpe real que não liga a um qualquer súbdito, continuou o seu caminho imperturbável.
Ao meu lado, numa outra mesa, duas senhoras, talvez mãe e filha. Ao ver-me quase gritar, entabularam conversa comigo e sossegaram-me: as caixas estavam vazias. Ali fiquei a saber toda a história trágica da dama de negro. Era filha de um fulano importante ligado à arquitectura. Fora a droga que, num vício destruidor, transformara aquela mulher num farrapo humano oscilante. Estava internada num estabelecimento ali na Vila. Assoberbada entre um excesso de amparo material e uma infinita carência de amor, assim era a vida trágica daquela mulher que teve o azar de nascer num berço de ouro. O que para mim, durante um escasso tempo, foi motivo de vigilância moralmente recriminável, para aquelas duas mulheres, aquele quadro dramático do ponto de vista humano, era a rotina que conheciam bem numa pessoa que, provavelmente, o sucesso e a fama do pai condenara a filha a uma indigência de afecto continuado e sem fim.

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