Tem uns olhos tristes, tão tristes, tão tristes, que, por parecer carregar toda a solidão do mundo, até parecem humanos. Embora a idade já mostre marcas num rosto sereno emoldurado com olheiras profundas, mostra um corpo seco como as palhas da manjedoura onde teria nascido o Menino Jesus.
Dizem que é uma “agarrada” a velhos hábitos que, vindos do tempo dos hebreus, diariamente ingerindo um álcool manhoso, faz, desfaz e liquefaz um fígado que regula o metabolismo e se quer forte para a desintoxicação do sangue que lhe corre pelas veias.
Dizem que o vício é tal que para obter a satisfação que a mantém de pé e aparentemente lhe levanta uma auto-estima que há muito perdeu nas veredas do emaranhado da psicologia e antropologia humanas, qualquer recurso serve.
Em busca de consolo físico e espiritual, ultrapassando pela direita uma moral que se perdeu na bruma do silêncio, transpõe qualquer obstáculo que se atravesse. Como tomada por um encosto de espírito maléfico que, ainda não conseguindo o metafísico descanso eterno, vagueia pelos caminhos e veredas da aldeia. Sem músculo que se vislumbre nos magros membros, como atleta de alta competição, transpõe uma cancela em ferro de altura considerável, uma qualquer porta mal fechada, força sem dificuldade qualquer janela bem trancada a sete chaves em busca de uma garrafinha com conteúdo inqualificável pelos enólogos, licoroso, amargo, tinto, branco, velho ou novo, tanto faz. Mas se por acaso não há pinga, pouco importa. Sempre se deita a mão a uns quaisquer bens que rendam qualquer coisinha e se possam trocar por uns cobres.
O santo padroeiro do lugar, pregado num tronco cuja cepa não é identificável, como recepcionista de promessas em vão de escada, classificado pelos Romanos como culpado de heresia e pagador de todas as maldades do Universo, pelo respeito que viu esvoaçar nas trovas invisíveis do vento, há muito que perdeu a fé. Em catarse, interroga-se sobre o seu desempenho representativo da igreja Católica Apostólica Romana neste lugar de perdição. Se ninguém lhe liga nenhuma, o que faz ali? Sem paciência para ser o saco das marradas da frustração colectiva, está farto de ter um papel meramente decorativo e ser ornamentado com flores. A tampa saltou-lhe quando, dentro da capela, para uma dúzia de convidados, há dias, um partido reconhecidamente secular decidiu fazer uma auscultação política sobre as necessidades do povoado para o próximo quadriénio, que se aproxima com as eleições autárquicas. O que mais o incomodou nem foi o carácter privado do encontro de amigos na casa de oração, antes, foi a discussão e os altos berros que ecoaram pela vizinhança e fizeram acordar a passarada pronta nos beirais à volta para dormitar ao entardecer e o lusco-fusco da noite que se aproximava.
Mesmo assim, com alguma indulgência, São Sebastião continua com os olhos pregados nas cintilantes estrelas do Céu, que nos cobre como guarda-chuva esburacado, na esperança de que aconteça um milagre na conversão dos hereges.