sábado, 30 de março de 2024

BARRÔ: AMANHÃ CELEBRA-SE A PÁSCOA

 





Este ano, contrariamente aos antecedentes, com início no Domingo de Ramos e ao longo da Semana Santa, as portas principais das casas da aldeia quase não foram enfeitadas com a cruz envolvida num pano de cor púrpura – a cruz simboliza a crucificação de Cristo e o tecido roxo a tristeza, a dor e a penitência. Ou melhor, para ser mais correcto, exceptuando o átrio da capela, em cerca de sete dezenas de lares (com alguns vazios), apenas três habitações da mesma família, a propósito, mereceram o privilégio da atenção concedida.

A primeira pergunta que ocorre é a razão deste desligamento com a tradição cristã.

Porquê?

Será que a aldeia cortou relações com o Criador?

Não se sabe ao certo, mas é bem provável que assim seja.

Historicamente, os moradores do lugar nunca foram muito ligados à igreja. Tiveram sempre uma relação distante, parecida entre o padrinho e o afilhado. Em caso de extrema necessidade, os pedidos solicitados e as promessas, a cumprir em caso de deferimento tácito, foram sempre realizadas no maior segredo e aconchego do lar, doce lar.

Fosse por Barrô derivar de zona fértil em barro, em que a argila precisa de ser moldada, ou não, a verdade é que os nativos desta povoação foram sempre impregnados de uma introspectiva sombra facial, uma retraída e profunda tristeza, a dar vontade de lhes fazer um largo traço de sorriso ao longo da boca. Como se, seguindo a tradição pascal, o seu fim anunciado fosse a crucificação.

Ao longo dos últimos três quartos de século, a capela de São Sebastião somente era visitada nos funerais dos que iam caindo em combate e na festa anual da comemoração do Santo – neste 20 de Janeiro, a presença dos locais e outros da diáspora foi sempre uma obrigação individual para mostrar o bom fato de elegante corte e o ostentatório automóvel de marca cara, sobretudo, para que todos vissem bem a aura de sucesso de um filho da terra que partiu com uma mão atrás e outra à frente e agora parecia rico – mal saberá ele que entre-dentes da vizinhança, em surdina, se diz que saiu pobre e regressou rico porque andou a roubar na estrada.

Fosse por razões de ADN, ou simplesmente por questões de defesa pessoal em rosto fechado a fazer lembrar o “Incrível Hulk”, a verdade é que os actuais locatários mantêm esse peculiar traço hereditário de identidade a pender para o desdém e a tragédia iminente.

Pode acontecer com a maior naturalidade um chegado recente, vindo de fora, dar um abraço de afeição ao seu conterrâneo e procurar marcar um encontro mais tarde para colocar a conversa em dia e receber em resposta: “podes vir conversar, mas se é para pedir dinheiro não venhas”.

Depois das explicações ontológicas, da existência e do ser, a tentar justificar a falta de saudação pascal, temos que concordar que deve haver mesmo algumas razões materiais para as pessoas se comportarem de forma pouco amistosa para com o Filho de Deus.

E pensando bem, há carradas de motivos para mostrar um certa animosidade.

Há imensos exemplos de que Cristo, com a sua vetusta idade, se tornou desleixado com os seus discípulos. Lembremo-nos das enxurradas de chuva, vento e frio que tem assolado esta terra no último mês.

Recordemos que a alma das gentes do povoado anda negra como o chamiço. Consta-se que há várias separações e divórcios em perspectiva.

Só para citar, a menina Genoveva já plantou várias vezes batatas, couves e favas, e veio o temporal, e pumba. Foi tudo para o galheiro.

O Hermegildo, boémio e um doce de rapaz, tinha planos já traçados para trocar o seu BMW. Até tinha contactado já o stand. Subitamente, foi chamado ao escritório da grande empresa em que é colaborador e foi informado de que, por motivos de reorganização, vai ser dispensado. Coitado! Isto faz-se?

A Laurinda, que faz vestidos por medida, com longa clientela conseguida ao longo de meio-século, anda desolada. Os fregueses são cada vez menos. Culpa a “Primark”, uma marca de roupa barata e feita no Oriente, e os imigrantes chineses, com os seus espaços de venda a fazer lembrar estádios de futebol.

São Sebastião, o padroeiro da povoação, em face do clima de rebelião, está cada vez mais ensimesmado. Como se já lhe não bastassem as setas cravadas no peito e os bicos de papagaio. Com os olhos vazios e perdidos no além, olha para cima, para o Céu, em busca de uma resposta que tarde ou nunca virá. A sua maior preocupação são as manifestações do povo. E que, mais tarde ou mais cedo, em consequência do descontentamento popular, acabará por lhe caber em sorte.

Feliz Dia de Páscoa.


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