sábado, 10 de fevereiro de 2024

MEALHADA: O ÚLTIMO DIA DO MERCADO DE SANT’ANA





O relógio da torre sineira da igreja matriz da Mealhada terminou há pouco de bater a última das doze badaladas. O tempo, como se indeciso entre o rir e o chorar e a oscilar entre dois polos, ora intermediava entre um sol brilhante e radioso e uma chuva copiosa.

O senhor Ventura, com o interior da caixa-aberta da sua camioneta repleta de caixas de madeira, preparava-se para abandonar o Mercado de Sant’Ana pela última vez. Esta popular praça, de roupas novas e usadas, calçado, árvores fruteiras, aves de criação, carnes vermelhas e brancas, sementes e hortícolas encerrava definitivamente hoje, 10 de Fevereiro de 2024.

Durante as últimas três décadas, impreterivelmente, pelas sete da matina de um qualquer Sábado, gelado ou tórrido, o comerciante de frutas e hortaliças marcou presença e, como fazendo parte integrante de um coro em notas musicais desafinado, com os pregões brejeiros e de assédio, ajudou a tornar aquele espaço, onde a ruralidade franca, com o calão, o palavrão e o vitupério, numa miscelânea de cores variadas, misturada com a “finesse” citadina, se torna encantadora. Como se um território neutral se tratasse, numa paz orgânica, tolerante e apaziguadora, ali, numa amizade cimentada nas diferenças de cada um, num caldinho multicultural, conviveram vendedores de etnia cigana, negros, e homens e mulheres de todas as cores.

Com a mão esquerda na manete da porta do automóvel, o pé do mesmo lado no patim e o direito na terra batida e esburacada pelo calcar das máquinas e carroças de duas rodas, o comerciante de frutas e leguminosas, com um olhar apagado e tristonho, com a mesma nostalgia de quem se despede de um amigo que parte para sempre, aparentando não ter qualquer pressa, parecia amarrado e adormecido perante a paisagem que se estendia à frente dos seus olhos.

Não era uma bela vista paradisíaca, daquelas metafóricas pinturas materializadas que transcende a realidade e faz bem à alma de qualquer um carecente. Pelo contrário, numa imensidão de chapas de folhas onduladas meio retorcidas a proteger parcialmente das intempéries e da canícula e suportadas por barras de ferro enferrujadas a fazer lembrar uma imagem terceiro-mundista, era um cenário de extrema pobreza visual.

Com o motor a ronronar, como se de um gato se tratasse, parecia que o “bicho”, sem respeito pelo sentimento de solenidade do momento, aguardava o par de mãos do dono para se pôr a andar dali para fora. Mas o homem, como se estivesse pregado com cimento àquele chão pleno de crateras, teimava em não dar acordo de si.

Só quem sente abruptamente o corte de qualquer coisa, um hábito, uma rotina, que se colou a nós e, como revigorante, nos ajuda a encarar o dia e a ser o que somos, consegue compreender o sofrimento do desaparecimento de algo que morre, ou desaparece, e perceber a lágrima solitária e furtiva que se soltou daqueles olhos cansados.

Mas, foi emoção de um momento. Segundos ou minutos, ou coisa que o valha. O som estridente de uma buzina acordou o senhor Ventura daquele longo torpor.

No próximo Sábado estará novamente pronto a atender os seus muitos fregueses na nova infra-estrutura comercial.


O NOVO MERCADO ABRE NO PRÓXIMO DIA 17


Depois de 115 anos a servir a população, entre o provisório e o definitivo, o Mercado de Sant’Ana fecha a última página de uma história que dava um livro. O terreno, onde funcionou mais de um século e está englobado no átrio da Capela com o mesmo nome, é propriedade da Santa Casa da Misericórdia da Mealhada. Alegadamente, destina-se à construção de novas valências sociais, como lar de terceira-idade, a desenvolver por conta da Irmandade mealhadense.















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