Em 1972 –tinha eu então 16 anos, e que me lembre, porque os frequentei- havia em Coimbra 7 grandes colectividades onde ao sábado à noite havia sempre baile e no domingo matinés. Na Baixa eram famosos os Rancho de Coimbra e o Coimbra Clube; na Alta o salão do Grémio Operário dava cartas; na Conchada era o clube das Patelas; em S. José , próximo da passagem de nível, havia o Clube do Calhabé ; nas Almas de Freire era o Alma Lusitana e em Bordalo havia também o clube, salvo erro, de Bordalo.
Talvez para os mais jovens tudo o que estou a escrever seja novo e, perante as milhentas opções de diversão nos dias que correm, possa parecer quase surreal, mas a verdade é que, nesta altura, estes grandes salões de baile eram a única saída possível para se “engatar” uma miúda. E não se pense que era fácil. Por muito janota elegante que um homem fosse, para além de ter de conquistar a rapariga, obrigatoriamente, teria de passar no exame prévio da mãe, que, sentada ao lado da filha, guardava o seu tesouro com unhas e dentes contra o gabiru invasor desconhecido.
Para se ter uma ideia, nenhuma rapariga solteira ia sozinha para o salão sem ir acompanhada pela protectora. Se alguma contrariasse esta tradição seria entendido pelo homem como “oferecida” ou “rodada”, isto é, teria já passado pelos braços de muitos homens. Este acompanhamento pela familiar era uma espécie de certificado de garantia de primeira-mão. Havia excepções neste procedimento, que era o caso das chamadas “sopeiras” –empregadas domésticas internas que vinham da aldeia para a cidade trabalhar para casa dos patrões, os “senhores”. Estas raparigas, normalmente já acima da adolescência, ignorantes nas letras, mas sabidas na experiência da vida, eram muito procuradas, talvez pela sensação de que seriam presas fáceis, uma vez que tinham os pais longe e não as poderiam guardar. Muitas vezes se pensava erradamente que com um tempo de namoro abririam as defesas, mas, às vezes –e eu que o diga- eram muito piores do que qualquer outra conquista.
A área reservada à dança teria talvez em média cerca de 50 metros quadrados. Habitualmente o chão era em madeira, com paredes brancas emolduradas por fotografias de todos os directores até aí empossados. Era também comum aparecer uma zona dedicada às taças e troféus conquistados pelo clube ao longo das décadas em várias actividades desportivas. A bandeira da agremiação estava presente com grande garbosidade.
Em volta, alinhadas em duas filas, eram colocadas as cadeiras de madeira onde se sentavam a candidata a noivado e ao lado a mãe que, como polícia de costumes, visionando o espaço territorial em volta, verificava se o calmeirão, a dançar, estava a apertá-la demasiado contra si. Muitas vezes o “aproveitador” da inocente, porque se juntava demasiado e se tornava atrevido, ao mínimo sinal da fiscalizadora mãe, era abandonado pela “debutante” em plena roda –uma vergonha para a época. O homem que lhe calhasse em sorte tal destino ficaria marcado e, a partir dali, teria muita dificuldade em ali conseguir conquistar uma virgem.
Ao fundo estava o palco ligeiramente elevado a cerca de um metro do chão. Era ali que actuavam os conjuntos musicais mais badalados à época -lembro os Sombras, os Vikings, os Walkers.
Numa sala ao lado ou no rés-do-chão funcionava o bar, que, para além da bilheteira na entrada, era outra fonte de receita. Muitas vezes, por causa de uns copos, um rufia com grão-na-asa, começava aqui grandes cenas de pancadaria que interrompiam o bailarico a meio.
E PORQUE ESTOU EU A RECORDAR ESTES SÍMBOLOS PERENES DE CULTURA?
Comecei a escrever sobre estas tão reputadas salas de memória precisamente porque um antigo dirigente do Coimbra Clube, Júlio Ramos, criou uma página no Facebook com o título de “Grupo de Antigos Dançarinos do Coimbra Clube”. A ideia, para já e para começar, segundo as suas palavras escritas, “será juntarmos, no próximo dia 22 de Outubro, no restaurante “A Democrática”, num almoço, vários antigos frequentadores e simpatizantes desta prestimosa colectividade. Será um encontro com a saudade, para, sobretudo, reunir as “meninas” e os “meninos” que dançaram no Coimbra Clube. Será também para mostrar à cidade que essa “outra” Coimbra e o espírito associativo da “velha Baixa” continuam lactentes nos nossos corações e bem vivas na memória.
Neste grupo, ainda recente, para além do fundador, fazem parte o Carlos Cidade, a Celeste Correia, o Diamantino Carvalho, a Isabel Maia, o Luís Fernandes, o Adriano Eliseu, a Tereza Paula Correia, o Rosa Pita, o Óscar Pinto, o Carlos Pedrosa, o Fernando Simões, o Graciano Marques e a Adriana Dourado.
E QUEM É O JÚLIO RAMOS?
Segundo a sua descrição, “sou um cidadão de Coimbra, nascido na freguesia de Almedina. “Salatina” de nascimento em 3 de Janeiro de 1939” –“salatina” é um nascido na Alta, em redor da Universidade, compreendendo a zona do Largo da Sé Velha para cima-, “Chibata” por formação” -nascido do Largo da Sé Velha para baixo, compreendendo as zonas de Almedina e Sousa Bastos- “e “futrica” por opção” –era a designação para o trabalhador, que habitualmente morava na zona mais pobre e destinada ao operariado, e que o diferenciava do estudante. Por razões de equivalência de classe era o marido da “tricana”, esta era a mulher trabalhadora do povo, que ia buscar à freguesia o rol da roupa e ia lavá-la nas águas correntes do Mondego
Continua Júlio Ramos a descrever-se, “fui aprendiz de tipógrafo em 1954; fui empregado de escritório em 1957; fui vendedor a partir de 1960 e chefe de vendas a partir de 1981. Fui presidente do União de Coimbra, onde cheguei a lidar com 700 atletas de várias modalidades e de escalões etários. Cheguei a trabalhar com 20 técnicos.
A minha ligação ao Coimbra Clube iniciou-se em 1956, como associado. Fui frequentador assíduo dos bailes da colectividade, onde comecei a fazer amizades com a minha geração, mas também com a geração anterior. Fui dirigente por vários mandatos intercalados a partir de 1959. Nessa altura era o presidente o senhor Manuel dos Santos, comerciante da Baixa.
E O JÚLIO LEMBRA ALGUMA HISTÓRIA ENGRAÇADA?
Responde Júlio Ramos, “ai tantas, tantas! Olhe, assim rapidamente, lembro que em 1959, era o presidente do Coimbra Clube o senhor Manuel dos Santos, um reputado comerciante da Baixa, e que em certas conversas se referia, amiúde, à sua vida passada, como tendo estado 11 anos num colégio.
No primeiro de Maio, dia do trabalhador, desse ano –feriado dos tipógrafos-, vinha a sair do Coimbra Clube, seriam talvez cerca de 23 horas, e ele, dirigindo-se-me, disse: “vou contigo até à Estação Nova, para comprar o “República”, pois parece que esta tarde houve merda no Rossio, em Lisboa”.
Anuí, e lá fomos à conversa pela Avenida Fernão de Magalhães. Quando chegámos ao Largo das Ameias, ele parou, perfilou-se todo de ouvidos, perscrutou, e disse: “cava “Juleca” que eles vêm aí!”
Sem saber o que queria dizer aquele alerta, e muito menos o que se passava, “pernas para que te quero” pela Rua Adelino Veiga adentro.
Na noite seguinte, quando cheguei ao café Santa Cruz, lá estava ele na mesa habitual com o “Tó” Pereira, o “Saló”, o Aurélio, o “Mané”, o Euclides Costa e o Matias “das varizes”. Ainda eu não me tinha sentado, ouvi uma grande galhofa… e eu a zero! Às tantas, o senhor “Manel”, que já tinha contado aos demais, vira-se para mim e disse: “olha, ontem, lá no Largo das Ameias, era a PIDE que vinha no meu encalço. Disse-te para fugires porque queria proteger-te. Já agora, para que saibas, digo-te que quando brinco que estive 11 anos no colégio, foi… no Tarrafal.
1 comentário:
Só conheço Julio Ramos de nome, trocamos alguns comentários no Facebook e guardo com muito agrado um livro autografado por ele que me ofereceu.
Viva o União de Coimbra.
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