sábado, 3 de novembro de 2007

A MORTE ... NA NOSSA VIDA

(IMAGEM DA WEB)



 A propósito do dia de todos os Santos ou de Finados, comemorado no dia 1 de Novembro, veio-me à ideia uma história que me contaram: uma senhora, de cinquenta e poucos anos, ficou viúva há cerca de um ano. Pois, diariamente, continua a proceder como se o marido estivesse vivo. Durante o dia, fala “com ele” a toda a hora. Quando se visiona ao espelho do seu quarto, e coloca um rímel nos olhos, a seguir vem a inevitável pergunta: “estou bonita, não estou Francisco? Continuo a ser o teu amor, não continuo? Devo vestir este vestido, que gostas tanto? Olha para este decote, que deixa os homens malucos. Estou bem, não estou?”.
Quando comunica com a sua empregada a dias, os recados vêm sempre acompanhados: “a D. Maria não se esqueça de limpar a carpete da entrada como o senhor engenheiro gosta”. A ementa diária tem sempre em conta os gostos do fisicamente desaparecido, mas mentalmente presente na cabeça da senhora. À hora do almoço, na mesa, a empregada coloca todos os talheres, sem esquecer o lugar ocupado outrora pelo engenheiro Francisco.
Na cama de casal, onde continua a dormir a viúva, o travesseiro e o lugar do finado continua ali. Mesmo deitada, e sozinha, a senhora trava diálogos, unidireccionados sem resposta, com o seu marido desaparecido nas brumas da morte, mas, para ela, ele continua a dormir ali todos os dias. O seu quarto continua exactamente igual como sempre foi. Em cima da cómoda uma moldura de prata mostra um casal, em trajes de cerimónia, certamente do casamento. O homem sorri abertamente, perante o cenário actual, não se sabendo se o faz em sinal de agrado e aprovação, ou, se pelo contrário, a sua expressão facial, não passará de um esgar de ironia ou compreensão pelo comportamento da sua consorte. Na mesinha de cabeceira, respeitante ao lado do finado, lá está a garrafinha cheia de água, com o respectivo copo, e o último livro que Francisco lia e não chegou ao epílogo. O guarda-vestidos, como cofre de relíquias, conserva religiosamente todas as roupas daquele que partiu desta vida, pelo menos fisicamente, para não mais voltar. Ali só a senhora mexe. Ninguém porá as suas mãos impuras nas vestes e coisas do recordado com saudade.
Diariamente a senhora vai ao cemitério visitar o seu amor e levar flores. Ali passa várias horas a “conversar”, em monólogo sem resposta, com o seu companheiro desaparecido e que, para ela, continua “vivo” na sua memória.
Chegados aqui, passemos à análise comportamental desta viúva, que, como muitas outras e outros apartados pela força da natureza dos seus elementos relacionais de uma vida preenchida de amores e desamores, de repente, se vêem sozinhas e, num luto continuadoe a raiar o patológico, continuam a acreditar que o desaparecido continua vivo e ali ao seu lado.
É também pertinente questionar se devemos continuar a enterrar os nossos mortos, num costume milenar, numa tradição algo arcaica, ultrapassada e pré-histórica. Porque não doarmos os nossos corpos à ciência ou escolhermos a cremação como fim do corpo físico? Não sou contra as memórias. As recordações são parte intrínseca do ser humano –alguém disse um dia que um povo sem memória é um povo sem futuro-, são a ponte entre o passado, o presente e o futuro. São o amenizar de momentos só nossos, sem partilha possível. Mas essa saudade, no respeitar ao velar dos mortos, pode ser perfeitamente possível através de uma fotografia junto de outras que fazem parte da nossa genealogia e de círculos de amigos.
Penso que da forma como encararmos a morte como um acto natural, uma passagem para outro estádio ou vida, estaremos a evoluir mentalmente e tornar-nos-emos um povo intelectualmente mais desenvolvido.
Não tenho dúvidas de que tudo sendo dinâmico, esta forma de luto e de encarar a perda de alguém querido que se foi, esta tristeza carregada, umas vezes verdadeira, outras vezes fingida, vai mudar, a bem do futuro e de todos nós.
Uma grande maioria de portugueses continuam a pensar que o ambiente envolvente junto de quem morre ou, nomeadamente num cemitério, tem de ser forçosamente de tristeza carregada e de lágrimas em corrupio. Terá de ser assim?
E, lembrei-me disto, porque no último dia de finados ou de todos os Santos, em Coimbra, junto do principal cemitério, o da Conchada, para além de se terem instalado imensos vendedores de flores e de velas, também se instalou uma rollote de vendas de farturas. Caiu o Carmo e a Trindade. “Uma feira”, argumentam os mais puristas. Porque haveremos de levar tudo tão até ao superlativo absoluto? Será para justificar o fado? Bolas!, se assim é, morra o fado, venha o "pimba" e acabe-se com o sorumbático endémico. Venham os “bolinhos e bolinhós” e a noite das bruxas ou de Halloween. É preciso desmistificar e expurgar o medo de morrer. Cante-se e dance-se nos funerais, como se faz nos Estados Unidos. Dê-se ao luto uma importância menor. Deixe-se de, numa encenação teatral, vestir o preto, mostrando a aparência da dor, que tantas vezes não é sentida. Eleja-se o vermelho como a cor do fogo e do amor que se tinha ao ente desaparecido. Vai levar tempo? Sem dúvida que vai, até porque prevalece maioritariamente a religião Católica-Romana, onde impera o culto velatório dos seus mortos. Mas comecemos a pensar numa mudança de mentalidades necessária numa nova forma de encarar a morte… como continuação da vida.
É preciso começarmos a pensar pelas nossas cabeças e, numa ditadura anacrónica e continuada, evitar que nos imponham os rígidos costumes e tradições que, hoje, cada vez menos fazem sentido. E mais, que, no limite, só são bons para o comércio de flores, velas e outros afins. Escusado será dizer que respeito quem não pensa assim. Este texto pretende -não sei se consegue- apenas abrir uma brecha para uma reflexão necessária, mas não pretende impor qualquer ideologia ou doutrina. À vontade de cada um, cabe-nos respeitá-la, por muito que se discorde dela, ou não. Até porque este costume de velar os mortos está muito arreigado no povo e não é fácil de mudar. Só o tempo.

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