terça-feira, 18 de setembro de 2007

A CANÇÂO DO BANDIDO



 Encontrei-a há cerca de 30 dias. Não a via há mais de um ano. A Francelina é mãe de um rapaz amigo do meu filho e com os mesmos problemas deste. Aquele, tem 24 anos, extremamente sensível, talentoso para as artes, letras e música. Senhores duma dialéctica invejável, clarividentes e de uma inteligência acima do comum. Muito achacados à depressão, desde os 16 anos que a sua vida é vivida entre o isolamento do seu quarto, psiquiatras e psicólogos. Já por várias vezes estiveram empregados, mas o máximo que conseguiram permanecer nesse trabalho foram 6 meses. A média andará nos 60 dias de permanência. A cada despedimento corresponde uma profunda crise de identidade e afirmação, e, subsequentemente, mais uns anti-depressivos, mais uns ansiolíticos e mais uma caixa de “xanax”. Como a sua autodisciplina é quase zero, abandonam-se nos braços de morfeu e, como se andassem em círculo, dormem para esquecer, e, quanto mais dormem, cada vez mais vão aumentando a sua carga depressiva de isolamento e solidão. E assim é a suas vidas. Divididas entre a bipolaridade de dois dias completamente capazes de abraçar o mundo e cinco de profunda modorra anémica. Completamente perdidos numa apoplexia de falta de vontade e incapazes até de cuidarem da sua própria higiene pessoal. Devido à sua elevada inteligência, são profundamente manipuladores, conseguindo manobrar as mães como se fossem marionetas de santo Aleixo.
Depois de mais de um ano sem nos vermos, achei a Francelina muito apagada psicologicamente, como se carregasse o mundo às costas. Estava vestida de uma forma pesada, tendo em conta a sua imanente feminilidade. Ela tem 50 anos, talvez 1,60 de altura, o chamado tipo “mignon”, pequenina. Um rosto bem desenhado, num corpo bem torneado, um cabelo louro oxigenado, olhos verdes de grande ingenuidade.
Perguntei-lhe então como ia a família e as coisas lá em casa, nomeadamente com o seu filho João. “Tudo mal senhor Luís!”-exclamou em tom profundo.
“Tudo mal, como?”-interroguei com grande curiosidade e apreensão.
“O meu marido morreu, quase há um ano com um cancro. O meu João, desde essa altura, fechou-se dentro de casa, mal sai. Diz que “morreu” também com o pai que partiu. Agride-me continuamente. Olhe que há dias, cheguei a casa, abri a porta do quarto e deparou-se-me o João completamente com o cabelo rapado como o pai nos últimos dias da sua agonia. Ele é tão parecido com o meu marido que quando o vi assim, comecei a gritar desalmadamente. Parecia que estava a ver o meu marido. Ele fez aquilo para me ferir. Magoa-me muito. Vai ao ponto de dizer que não presto, que sou má mãe. Que não me quer. Só quando me pede dinheiro é que o seu tratamento para comigo muda. Ando muito infeliz senhor Luís! A minha vida resume-se a trabalhar durante o dia; à noite faço o jantar para mim e para ele, lavo a louça, tomo um comprimido para dormir e é esta a minha diária. Nem televisão me apetece ver”.
Apanhado neste turbilhão de infelizes notícias, meio a balbuciar, quase sem saber o que dizer, tentei animá-la com palavras de estímulo: “a Francelina não se pode deixar abater. O João está a viver uma profunda depressão devido ao desaparecimento do pai, num luto continuado que aumenta o seu sofrimento. Depois, duma forma calculada, projecta em si a dor da sua perda. Mas isso vai passar, vai ver. Tente retirar-lhe do quarto tudo o que o faça lembrar-lhe o seu marido: fotos e outros objectos.
Quanto a si, faça por sair de casa, passei, vá ao cinema. A francelina é uma mulher muito bonita, largue as recordações, dando-lhe apenas uma importância relativa e viva a vida. Arranje um companheiro. Comece a pensar nisso. Saia de casa, não se enterre nela como uma tumba”. Deixei-lhe o meu telefone para o caso de precisar de alguma coisa. Despedi-me, e a Francelina foi à sua vida e eu fui à minha e não mais pensei no assunto.
Ontem ligou-me: “senhor Luís posso falar consigo pessoalmente?”
“Claro, quando quiser”, respondi. Veio então tomar café comigo. Era outra Francelina que nada tinha a ver com a que estivera a falar um mês antes. Vinha toda aperaltada; cabelos louros atados, um rímel em volta dos seus bonitos olhos que brilhavam como um sol da meia-noite no Pólo Norte, um prometedor decote e uma saia justa, ligeiramente abaixo dos joelhos. Confesso que tive de disfarçar algum incómodo perante esta bela mulher.
Quando começou a falar, as palavras saíam-lhe em catadupa, numa ansiedade mal contida:
-Ó senhor Luís fiz o que me disse…estou tão feliz…
-Desculpe, Francelina, mas o que lhe disse eu?...Digo tantos disparates! –retorqui, meio a rir, sem me lembrar minimamente do que dissera há um mês atrás.
-Então você não me disse, há um mês, para eu arranjar alguém?! Então, há oito dias respondi a um anúncio no Diário de Coimbra, de um senhor divorciado que procurava uma companheira. Liguei e respondeu-me um homem de voz calma, envolvente. Um cavalheiro. As suas palavras pareciam uma brisa suave numa noite cálida de verão. Combinámos e encontrámo-nos no dia seguinte para beber um café.
Ai senhor Luís, fiquei derretida perante aquele homem charmoso. O seu porte atlético, as suas maneiras doces –começou logo por me perguntar se me podia tratar por querida…era um tratamento cerimonioso, juntamente com o de “você”, referiu. 
O seu fato, Don Giovani –que eu vi logo, quando ele tirou o casaco e pôs a etiqueta à vista. As suas calças bem vincadas, a terminar num sapato de verniz. E o seu perfume?! –a mulher parecia em êxtase, no entanto, para não pensar que eu não estava a tomar atenção, fiz uma pergunta:
-E o carro como era? Era novo? Intuí antecipadamente a resposta.
-Era, senhor Luís, um carrão, tipo Opel. –respondeu. 
Na segunda vez que nos encontrámos convidou-me para irmos até ao Luso. E fomos! Durante o caminho, as músicas que ele escolheu eram as minhas preferidas: Roberto Carlos, Ivete Sangalo, Madredeus. Ai, até estou arrepiada! Como é que ele sabia que eram as minhas músicas preferidas?
-Então e o que faz ele profissionalmente? –interroguei, embora também soubesse, mais ou menos, o que iria sair.
-É inspector da Segurança Social. Ganha muito bem. Claro que está a ajudar a ex-mulher e uma filha que está a acabar o curso. Coitado! Ainda ajuda a mãe que mora ali para os lados da Conchada. Disse-me que não é nada materialista. Ele só quer viver o dia-a-dia. O dinheiro não lhe interessa.
Se você visse como ele me trata: todos os dias me liga, logo de manhã e à noite. O seu cumprimento, numa voz pousada, é sempre: “como está o meu docinho, o meu bijuzinho, o meu anjo que Deus proteja na sua glória? À noite, liga-me sempre: “durma com Deus minha querida, que os anjos velem por si”.
Ai senhor Luís este homem é o meu delírio. Durante o dia só penso nele e à noite, durante o sono, ocupa todo o meu espaço de sonho.
Quando lhe perguntei se bebia, disse que não. Nem socialmente. Fumar, muito raramente. Já viu? Até nisso ele é como o meu falecido marido. Ai este homem não existe, é uma aparição! Veja bem, disse-me que tem 100 pares de sapatos e um armário cheio de camisas. Que amanhã irá para o Alentejo, resolver uns problemas acerca de umas herdades que são da mãe. Para a semana vai para Tenerife. –Remata em jeito de conclusão e como se não admitisse réplica.
-Uma coisa, que não entendo, Francelina, porque me está a contar isso tudo? –Tento indagar na bruma dos meus pensamentos interrogativos.
-Ó senhor Luís, estou numa terrível dúvida que me consome a alma. Este homem é demasiado perfeito. É demais para mim. Tenho medo de me enganar. Ajude-me senhor Luís. –Refere em apelo quase místico, fixando em mim os seus lindos olhos verdes de prado sedutor.
-Bom, Francelina, eu posso dizer-lhe o que penso, isso posso, mas o que lhe diz a sua intuição feminina? –inquiro-a.
-Que algo não bate certo, é demasiado perfeito para ser real. É como se ele soubesse tudo o que eu gosto. Como se estivesse dentro de mim. Sinto como se nos conhecêssemos há décadas. É isto que me mete medo.
-Então vou dizer-lhe o que penso, mas alerto-a que é mera intuição, posso enganar-me.
A Francelina está a ser enganada!
-Como?! –Ela desatou num choro compulsivo.
-Repare, há aí uma série de contradições. Por exemplo, vou apenas referir-lhe duas; se ele se diz não-materialista, como explica que ele tenha 100 pares de sapatos? E você acredita nisso? Olhe outra questão que ressalta; sendo ele tão bem apresentado e vivido, precisa de recorrer a um anúncio de jornal? Sabe, diz-nos o senso comum, que só recorre a um jornal, procurando uma conquista amorosa, uma pessoa, com pouco relacionamento social, tímida e introspecta. Ora, não é o caso desse seu conquistador barato. Segundo conta, todo ele é charme e à vontade no campo feminino.
Não gostaria de desapontá-la, no entanto, ele é o típico modelo de D.Juan, rasco, retirado dum velho filme, da década de 80, passado nos nossos ecrãs: “O CAPITÃO ROBY”.
-Mas..mas, como é que ele adivinhou tudo o que eu gosto? –procura ela entender por entre um choro desbragado e umas frases titubeantes.
-Olhe, Francelina, estes travestidos gentlemans têm uma intuição fora do comum. Eles têm vários perfis desenhados, de anteriores mulheres que conheceram. Então este quando olhou para si, bastou-lhe, mentalmente, aplicar a chapa correspondente. Acredite que é muito fácil.
Mas faça o seguinte: quando ele lhe voltar telefonar pergunte-lhe o nome completo. –nem de propósito o telemóvel da senhora toca. Era o cavalheiro. Ela perguntou-lhe o nome, ele a muito custo lá lho deu.
-Ai, sabe uma coisa? -Questiona-me a minha amiga. Eu notei que ele ficou muito atrapalhado. E mais; já nem se despediu com a habitual frase “até amanhã meu doce e adorado anjo”.


Hoje, liguei para a Segurança Social e, naqueles serviços, não existe nenhum inspector com o nome indicado.
Ao comunicar o facto à minha amiga Francelina, ela ficou de rastos e por entre lágrimas sofridas de desilusão interrogava: “porquê eu?”.


(HISTÓRIA VERÍDICA)

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa noite:
Só pra lhe dizer q já por aqui tinha passado... Curioso.... Nem comento...
Beijos
Etel