sábado, 22 de abril de 2023

UMA TROCA QUE ENVERGONHA

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Quase batemos de chofre na superfície comercial, ao dobrar um corredor. Era impossível não falar. Ela era uma minha conhecida desde há muitas décadas, eu sabia de todo o seu percurso existencial, desde que nasceu até à actualidade, agora com algumas rugas no rosto e cabelos branqueados resultado de um passado com mais de meio século.

Com a idade a avançar a todo o gás, na qualidade de sexagenário aborrecido e constantemente a fazer o balanço da vida, tenho reparado que me tornei mais “bicho do mato”, fugindo cada vez mais ao contacto com outras pessoas. Por mais dias sobrepostos que passam por mim a correr, a minha maior felicidade é, isoladamente, ler e escrever. Tentar explicar este meu afastamento social, é como se me faltasse a pachorra para conversas vazias e de circunstância. De certo modo, é como se me faltassem os temas para manter um diálogo vivo e interessante; como se o tempo, no seu esmagar de recordações, me levasse, amiúde, a repetir sempre as mesmas coisas; é como se estivesse cansado de me ouvir e farto de escutar os outros. Para os mais velhos, como eu, os tópicos são sempre os mesmos. Em repetição, insistimos no modelo cénico passado a papel químico: então como vai a tua vida? Estás com bom aspecto. E a tua saúde, vai bem? Há muito tempo que não te via…

Para e com os mais novos ainda é mais difícil de entabular diálogo. Aqui noto que o que soçobra é um “bota de elástico”, lá querem eles saber da nossa memória cultural, das dificuldades que passámos, do quanto tivemos que recorrer ao desembaraço, ao desenrascanço para não sermos apanhados em ramo verde. Com defeitos e virtudes, nascemos, crescemos e chegámos à terceira idade como resultado de um circunstancialismo económico, social e cultural.

Evidentemente, os interesses dos mais jovens, como água e azeite que não se ligam, são completamente diferentes dos nossos, dos mais velhos. Afinal, nasceram numa época de desenvolvimento mais rápido que a sombra, molecular, electrónico e digital, como nunca houve outra igual.

Como é normal ao fim de cada ciclo, está para se saber se, como humanos na sua interação, estamos melhor ou pior. Ou seja, se este progresso ao segundo, em busca de uma felicidade perene mas utópica, que é inalcansável, e do menor esforço mental e físico, está a contribuir para um Homem Novo ou, pelo contrário, está a concorrer para um humano perdido, sem crenças em si mesmo, ou no transcendente – por que numa delas, forçosamente, terá de acreditar -, sem saber muito bem para onde se caminha.

Depois da conversa introdutória e de circunstância, que se estabeleceu neste fortuito encontro entre eu e a minha mulher e a minha “amiga” na média-área comercial, atirou: “já não estou com ele… trocou-me por outro… foi viver com um homem. Já viu a vergonha que sinto? Se ao menos fosse com outra mulher, ainda vá que não vá...”

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